Redescobrindo os ancestrais

Denisovano: entenda o mistério de uma espécie humana extinta

Identificado na década passada, o denisovano foi um hominídeo que conviveu com neandertais e com o homem moderno. Há, inclusive, indícios de cruzamentos entre as espécies

O denisovano, 'parente' extinto dos humanos modernos que viveram na Terra há milhares de anos  -
O denisovano, 'parente' extinto dos humanos modernos que viveram na Terra há milhares de anos -

Na remota região russa da Cordilheira Altai, na Sibéria, existe uma caverna de 270m2, às margens do Rio Anui. Habitada no século 18 por São Dinis (Dionisio), a cavidade, antigamente chamada Pedra do Urso, foi rebatizada em homenagem ao ermitão, que não foi o único a morar lá: na década de 1980, cientistas encontraram evidências arqueológicas de até 180 mil anos. Entre elas, havia uma falange, que só seria descoberta em 2008, para, dois anos depois, revelar um ser humano extinto que, até então, ninguém desconfiava existir. 

Os denisovanos são, hoje, um dos maiores mistérios da história da humanidade. Ao contrário da outra única espécie humana arcaica conhecida — os neandertais —, pouco se sabe sobre esses parentes próximos do homem moderno. Porém, pesquisas começam a retirá-los da caverna, lançando luz sobre costumes, distribuição geográfica e possível interação com o Homo sapiens. Em dois dias de reportagem, o Correio relata os principais avanços na compreensão dos ancestrais. 

"A falange do denisovano foi uma das descobertas mais emocionantes na evolução humana na última década", diz Linda Ongaro, pesquisadora de pós-doutorado na Escola de Genética e Microbiologia do Trinity College Dublin, na Irlanda, e primeira autora de um artigo de revisão publicado, no mês passado, na revista Nature Genetics

"É um equívoco habitual pensar que os humanos evoluíram repentina e ordenadamente a partir de um ancestral comum, mas quanto mais aprendemos, mais percebemos que o cruzamento com diferentes hominídeos ocorreu e ajudou a moldar as pessoas que somos hoje", diz. Ongaro explica que a ciência acredita que os denisovanos cruzaram com os homens modernos, transmitindo alguns dos seus genes por meio de distintos eventos, ajudando a moldar o início da história humana. 

Assinaturas

Segundo Ongaro, ao contrário dos restos mortais de neandertal, o registro fóssil denisovano consiste apenas no osso do dedo, mandíbula, dentes e fragmentos de crânio. "Mas, ao aproveitar os segmentos denisovanos sobreviventes nos genomas humanos modernos, os cientistas descobriram evidências de pelo menos três eventos passados em que genes de populações denisovanas distintas abriram caminho para as assinaturas genéticas dos humanos modernos."

Cada um deles apresenta diferentes níveis de parentesco com o Altai denisovan sequenciado, indicando uma relação complexa entre essas linhagens irmãs. No artigo de revisão, Linda Ongaro e Emilia Huerta-Sanchez descrevem evidências que sugerem que várias populações denisovanas tinham uma extensa distribuição geográfica da Sibéria ao Sudeste Asiático e da Oceania à América do Sul. Esses grupos foram adaptados a ambientes distintos.

A dupla de pesquisadoras também descreve uma série de genes de origem denisovana que deram vantagens aos humanos modernos em seus diferentes ambientes. "Entre eles, está uma parte do genoma que confere tolerância à hipoxia, ou condições de baixo oxigênio, o que faz muito sentido, uma vez que é visto nas populações tibetanas; múltiplos genes que conferem imunidade aumentada; e outro que impacta o metabolismo lipídico, fornecendo calor quando estimulado pelo frio, o que confere uma vantagem às populações Inuit do Ártico", destacam.

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Novos estudos sugerem que eventos mediados pelo clima desempenharam um papel crucial na facilitação do fluxo genético entre as primeiras espécies humanas e deixaram impressões duradouras na ancestralidade genômica do homem moderno. É o que sinaliza uma pesquisa do IBS Centro de Física Climática, na Coreia do Sul, publicada na revista Science. A equipe, liderada por Jiaoyang Ruan, usou modelagem computacional para elucidar o que ele chama de "gangorra do cruzamento leste-oeste", em referência aos deslocamentos que incluem a Eurásia Central, o Cáucaso e as montanhas Tianshan, na Ásia Central. 

"Pouco se sabe sobre quando, onde e com que frequência os neandertais e os denisovanos cruzaram ao longo de sua história compartilhada", reconhece Ruan. Como tal, tentamos compreender o potencial da mistura Neandertal-Denisovana usando modelos de distribuição de espécies que reúnem extensos dados fósseis, arqueológicos e genéticos com simulações do clima global e do bioma."

Os pesquisadores descobriram que, para começar, os neandertais e os denisovanos tinham preferências ambientais diferentes. Enquanto os últimos estavam muito mais adaptados a ambientes mais frios, como as florestas boreais e a região da tundra no nordeste da Eurásia, os seus primos neandertais preferiam as florestas temperadas e pastagens mais quentes do sudoeste. 

Habitats

No entanto, mudanças na órbita da Terra levaram a alterações nas condições climáticas e, portanto, nos padrões de vegetação. Isso desencadeou a migração de ambas as espécies de hominídeos para habitats geograficamente sobrepostos, aumentando assim a chance de seu cruzamento. Os pesquisadores observam que concentrações elevadas de CO2 atmosférico e condições interglaciais amenas causaram uma expansão para o leste da floresta temperada na Eurásia central e a dispersão dos neandertais nas terras denisovanas. 

Por outro lado, concentrações mais baixas de CO2 e o correspondente clima glacial mais severo causaram potencialmente uma fragmentação dos seus habitats, levando a menores interações e eventos de cruzamento. "A resposta ao clima, à vegetação e às variações no volume do manto de gelo no Hemisfério Norte influenciaram a época e a intensidade de possíveis eventos de cruzamentos", comenta Axel Timmermann, professor da Universidade Nacional de Pusan, na Coreia do Sul, que também participou do estudo.

Um tesouro fóssil tibetano

Ainda há muitos mistérios sobre os denisovanos, hominídeos que viveram no leste da Ásia durante centenas de milhares de anos. Isso se deve, principalmente, aos poucos fragmentos de dentes e ossos. Por isso, uma descoberta recente na caverna de Baishiya Karst, em Gansu, no planalto tibetano, tem sido considerada um tesouro por arqueólogos. Trata-se de um pedaço de costela da espécie humana extinta, datado entre 48 mil e 32 mil anos atrás. 

Um dos mais conhecidos remanescentes dos denisovanos é a mandíbula Xiahe, encontrada na caverna tibetana. Porém, uma nova pesquisa mostra que esse não é o único fóssil do hominídeo no local. Depois de examinar milhares de ossos de animais, uma equipe de cientistas acredita ter identificado a primeira costela conhecida da espécie. 

"Se estivermos corretos, a costela fornece evidências fósseis de que os denisovanos ainda estavam vivos quando a nossa espécie se expandia pela Ásia", conta Zandra Fagernäs, coautora do artigo, publicado na revista Nature. "Isso apoia pesquisas anteriores baseadas na genética, que mostram que algumas pessoas que vivem hoje no sudeste da Ásia partilham até 5% do seu DNA com esses humanos extintos", destaca a pesquisadora do Instituto Globo da Universidade de Copenhague, na Dinamarca. 

Segundo Fagernäs, as descobertas fósseis ajudam a construir uma imagem de como eram os denisovanos. "Como só conhecemos os denisovanos a partir de alguns fósseis em todo o mundo, eles ainda são um pouco misteriosos. Cada novo indivíduo que descobrimos fornece, portanto, uma peça significativa para o quebra-cabeça de quem eles eram, onde viviam e quando." (Paloma Oliveto)

Paloma Oliveto
postado em 25/12/2024 06:00
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