TESOURA GENÉTICA

Como funcionam as "falhas" no DNA que provocam doenças

O Correio publica hoje e amanhã reportagens sobre eventuais "falhas" que provocam doenças, como Alzheimer, Parkinson e ELA, e pesquisas que mostram como solucioná-las por meio de um conjunto de técnicas específicas (CRISPR-Cas 9)

 3D render of a medical background with DNA strands
     -  (crédito: Image by kjpargeter on Freepik)
3D render of a medical background with DNA strands - (crédito: Image by kjpargeter on Freepik)

A evolução das terapias genéticas tem sido uma grande jornada. No fim do século 20, a ciência começou a explorar a possibilidade de interferir no DNA para corrigir mutações que geram alterações e prováveis doenças. Inicialmente, técnicas como a terapia gênica, baseada em vetores virais, mas foram desenvolvidas,  apresentavam limitações quanto à precisão e à segurança. O avanço mais revolucionário veio com a introdução do sistema CRISPR-Cas9, que permite a edição genética com uma eficácia sem precedentes e relativa simplicidade.

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Os distúrbios neurodegenerativos, como Alzheimer, Parkinson, Huntington e esclerose lateral amiotrófica (ELA), são frequentemente associados ao dobramento incorreto de proteínas. Esses erros causam agregados tóxicos que afetam a função neuronal e contribuem para a degeneração progressiva do sistema nervoso.

Tratando-se de Alzheimer, por exemplo, as proteínas beta-amiloides e tau se acumulam de forma prejudicial, levando à perda de funções cognitivas. O Parkinson é caracterizado pelo acúmulo de alfa-sinucleína, enquanto na doença de Huntington, uma proteína chamada huntingtina é superexpressa, o que também afeta a função neuronal. Além dessas, outras doenças são causadas por questões genéticas.

A tecnologia CRISPR-Cas9 emerge como uma ferramenta revolucionária. Essa forma de edição do DNA permite a modificação precisa de genes associados a doenças neurodegenerativas. Por exemplo, em modelos de Huntington, a CRISPR-Cas9 tem sido usada para eliminar sequências de repetição CAG expandidas no gene responsável pela huntingtina, reduzindo a produção de proteínas tóxicas.

Na doença de Parkinson, a tecnologia pode regular a expressão de alfa-sinucleína ou corrigir mutações em genes como o LRRK2, associado a formas familiares da condição. Além disso, a CRISPR-Cas9 pode ser usada para introduzir mutações protetoras ou aumentar a expressão de genes benéficos, como o BDNF, que auxilia na sobrevivência neuronal.

Desafios

A aplicação clínica da CRISPR-Cas9 passa por grandes desafios. A entrega eficiente dos componentes às células-alvo no cérebro continua sendo uma dificuldade, exigindo o desenvolvimento de vetores virais ou nanopartículas eficazes. Além disso, há preocupações com modificações genéticas não intencionais, que podem causar mutações indesejadas ou efeitos adversos.

Uma revisão sobre a tecnologia, realizada por Feizuo Wang, cientista da Universidade Nacional de Singapura, destaca o avanço da tecnologia, como o tamanho dos sistemas CRISPR-Cas tradicionais que dificultam sua entrega eficaz. Wang e seus colegas exploram estratégias como uma nova adaptação, chamada OMEGA, e a miniaturização das ferramentas de edição genética, prometendo maior eficiência e acessibilidade.

A equipe de Markus Affolter, professor da Universidade de Basel, na Suíça, desenvolveu o método SEED/Harvest, que combina o já conhecido CRISPR-Cas9 com uma via de reparo chamada Single-Strand Annealing (SSA). Esse método permite modificações genéticas precisas e eficientes, sem cicatrizes indesejadas, possibilitando a marcação e análise de proteínas em organismos vivos.

Renata Tenório, geneticista e coordenadora do setor de neurogenética no Instituto de Neurologia de Curitiba, detalha motivos específicos para a dificuldade de levar a edição genética de forma eficiente e segura até as células-alvo. "Nosso cérebro tem barreiras naturais que resguardam o órgão de substâncias potencialmente perigosas. Essa proteção dificulta o acesso do CRISPR-Cas9. É difícil direcionar o CRISPR apenas para as células específicas que precisam ser editadas, evitando efeitos indesejados em outras áreas do cérebro."

Segundo a especialista, as modificações genéticas nos neurônios podem alterar o comportamento das células, mudar como elas funcionam e como se comunicam. "Se as alterações não forem precisas, podem causar problemas como disfunções celulares ou até morte celular, levando a efeitos adversos que podem piorar a condição de um paciente ou provocar outros efeitos indesejados."

Carlos Aschoff, geneticista da DB Diagnósticos, pondera que é preciso cautela para ampliação do seu uso. "Para doenças neurodegenerativas, a tecnologia continua em estudos pré-clínicos, sendo necessário o desenvolvimento de estratégias seguras, estáveis e eficientes para seu uso e aplicabilidade."

 

Para saber mais

Terapia ou edição genética?

A edição gênica é uma forma de terapia genética que pretende não adicionar um gene ou proteína ‘correta’, mas, sim, alterar diretamente o material genético. Essa técnica ainda é pouco comum, os primeiros protocolos para uso rotineiro foram aprovados em dezembro de 2023 pelas agências reguladoras dos Estados Unidos e da Europa, para tratar talassemia (deficiência na produção de hemoglobina) e anemia falciforme (alteração dos glóbulos vermelhos). Outro tipo de terapia gênica é a inserção de genes funcionais, sem alterar aquele que é defeituoso.

Mais agilidade na análise

Uma equipe das universidades de Leiden e Delft, na Holanda, anunciou o desenvolvimento de uma ferramenta chamada SPARXS, que promete revolucionar o estudo das moléculas de DNA. Segundo o professor de Leiden John van Noort e coautor do estudo, "DNA, RNA e proteínas são os principais participantes na regulação de todos os processos nas células do nosso corpo", e a compreensão do seu funcionamento requer a análise de estruturas tridimensionais, um processo que, tradicionalmente, dura anos.

O SPARXS permite que milhões de moléculas de DNA sejam analisadas simultaneamente, reduzindo o tempo necessário para a tarefa. "Com o SPARXS, podemos medir milhões de moléculas de um dia a uma semana," enquanto métodos tradicionais levariam "vários anos ou décadas", afirmou Chirlmin Joo, professor da Universidade de Delft.  A inovação não apenas acelera as pesquisas, mas amplia as possibilidades de descobrir como a estrutura do DNA se relaciona com suas funções.

A técnica combina fluorescência de molécula única e sequenciamento Illumina de última geração, duas abordagens nunca foram utilizadas em conjunto. "O interesse começou quando precisávamos interpretar os dados", afirmou Ivo Severins, primeiro autor do estudo. De acordo com ele, as novas metodologias não apenas trazem resultados inesperados, mas desafiam os pesquisadores a encontrar correlações e padrões significativos nas informações obtidas.

Fernanda Ayala, geneticista, especialista em aconselhamento genético, ressaltou que o DNA é uma molécula extremamente complexa, com bilhões de pares de bases e uma organização tridimensional intrincada.

"A expressão gênica é um processo altamente regulado, influenciado por diversos fatores, como modificações químicas no DNA. Os genes não atuam isoladamente, mas, sim, em redes complexas, influenciando a expressão uns dos outros. Há ainda questões externas, como dieta, estilo de vida e exposição a toxinas, que podem afetar a expressão gênica."

Conforme os cientistas, a técnica tem o potencial de impulsionar avanços significativos na medicina. Com uma manipulação mais precisa das sequências de DNA, espera-se que novas terapias genéticas e abordagens em medicina personalizada se tornem viáveis. (IA)

Duas perguntas para: Salmo Rakin, geneticista e diretor do laboratório Genetika, em Curitiba

É possível dizer que a edição genética traz mais esperança?
Trata-se de uma ferramenta espetacular, com potencial ilimitado de aliviar o sofrimento. Precisou ser testada, modificada e adaptada por mais de uma década, mas agora se encontra finalmente em estágio de aplicação clínica. Existem mais de 6 mil doenças genéticas, sem cura e, dificilmente, há tratamentos específicos, que não sejam apenas paliativos. A edição gênica muda esse paradigma e dá uma esperança que nunca houve. Mais do que isso, ela pode ser aplicada em numerosas áreas, como oncologia, imunologia e infectologia.


Então, é possível esperar que esse sistema ofereça cura?
Ainda é muito cedo para sabermos se certos protocolos de edição genética seriam curas. No momento já é considerada uma revolução a forma com que pretendem melhorar a sobrevida e a qualidade de vida dos pacientes. Mas os próprios protocolos já evoluíram muito, e o objetivo final é curar. Inicialmente, a intenção era “apenas” inibir a atuação de determinado gene que estava alterado. Agora é possível corrigir uma sequência genética trocando ou adicionando material genético. O leque de possibilidades tem aumentado muito.

 

Isabella Almeida
postado em 29/12/2024 05:55
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