Ao passar por Brasília, Randy Schekman, vencedor do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, em 2013, conversou com exclusividade com o Correio a respeito dos desdobramentos de sua descoberta sobre o mecanismo de regulagem do transporte de vesículas. O trabalho, feito em parceria com os bioquímicos Thomas Südhof e James Rothman, permitiu uma melhor compreensão de doenças como tétano e diabetes e assegurou uma eficácia maior no diagnóstico de diversas patologias, segue contribuindo, por exemplo no tratamento de combate ao câncer. Na entrevista, o professor da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, analisou o papel da ciência na atualidade e os desafios de fazer pesquisa. O biólogo norte-americano veio a Brasília a convite da Nobel Prize Inspiration Initiative, entidade que atua em conjunto com a AstraZeneca para promover o contato com a comunidade científica. Na cidade, ele fez a palestra intitulada "O papel dos genes, das células e da ciência básica nas descobertas e nas doenças" para os estudantes da Universidade de Brasília (UnB).
Desde que recebeu o Nobel, quais são os avanços na compreensão de mecanismos de transporte vesicular e os impactos em doenças como tétano e diabetes?
Há muito mais detalhes desde os meus primeiros estudos. O meu trabalho apenas arranhou a superfície, agora sabemos muito mais. Muitos genes envolvidos nesses processos foram descobertos, alguns exclusivos dos seres humanos. A maquinaria básica para o transporte está presente na levedura que usamos para estudo, mas identificamos muitos mais genes nas pessoas. Existem várias versões de certos genes no DNA humano, cada uma especializada para diferentes células. Isso não era conhecido anteriormente. Alguns desses genes foram ligados a doenças genéticas. Embora isso não leve imediatamente a cura, ajuda a entender melhor essas doenças e, potencialmente, encontrar tratamentos.
Sua pesquisa também contribuiu para a compreensão de doenças neurodegenerativas, como o Parkinson. Como seu trabalho é aplicado ao tratamento dessas condições?
É difícil dizer que há uma aplicação direta das nossas descobertas para a doença de Parkinson, mas alguns dos genes que identificamos estão ligados a mutações observadas em pacientes com a condição. O meu interesse pelo Parkinson cresceu, em parte, pela minha esposa (que morreu de Parkinson), e fui convidado a liderar os esforços nessa área devido à minha pesquisa sobre a base molecular de alguns dos problemas envolvidos na doença. Embora eu não seja um neurocientista, minha pesquisa se cruza naturalmente com estudos sobre esse tema e achei importante contribuir.
O senhor causou um impacto significativo ao ajudar na fundação da revista de acesso aberto e-Life, visto que para ler artigos, normalmente, se paga um valor alto. Quais mudanças observou nesse cenário?
Há aspectos positivos e negativos. A boa notícia é que a publicação em acesso aberto ganhou força e agora é amplamente aceita. Governos e agências de fomento em todo o mundo estão pressionando os pesquisadores a publicarem seus trabalhos em formatos de acesso aberto, tornando as informações gratuitas e acessíveis. Antes muitos clínicos não tinham acesso a periódicos médicos devido aos altos custos, mas agora podem ler essas informações gratuitamente. Isso é uma grande melhoria. O lado negativo é que a indústria editorial ainda é dominada por grandes empresas altamente lucrativas. Elas encontraram maneiras de lucrar com o acesso aberto, cobrando taxas elevadas dos autores para publicar. Os governos precisam intervir para negociar melhores condições ou dizer aos pesquisadores para não publicarem nesses periódicos. O problema também é que os jovens acadêmicos sentem a pressão de publicar nesses periódicos de prestígio para construir sua reputação, o que perpetua uma cultura tóxica. Não é necessário publicar nessas revistas para ter sucesso, mas o sistema faz parecer que é.
Na palestra, o senhor discutiu o papel dos genes e das células nas descobertas e nas doenças. Como os sua pesquisa sobre transporte vesicular mudou a compreensão da função celular e das interações intercelulares no corpo humano?
A grande lição é que nosso trabalho com levedura, que não havia sido usada antes para estudar secreção de proteínas, forneceu informações valiosas. A levedura já tinha sido usada para investigar outros processos biológicos, como divisão celular e função mitocondrial, mas a secreção de proteínas não havia sido bem explorada. Identificamos vários genes envolvidos nesse processo, e esse conhecimento mostrou que a biologia é contínua entre as espécies. Mais importante ainda, nossas descobertas levaram a indústria biotecnológica a usar levedura para produzir proteínas humanas, como a insulina. Durante décadas, a insulina era extraída de pâncreas de porcos, o que causava problemas como alergias. Após a clonagem do gene da insulina, empresas biotecnológicas começaram a produzir a substância humana em bactérias, o que foi um grande avanço.
Como o senhor vê o papel de tecnologias modernas, como edição genética e inteligência artificial em estudos futuros de biologia celular e molecular?
A inteligência artificial já revolucionou nossa capacidade de prever como as proteínas se dobram. Durante décadas, os cientistas sabiam que a sequência de aminoácidos em uma proteína determinava sua forma final, o que era crucial para sua função. Agora, a IA permite prever essa dobra de forma muito mais precisa. Este ano, aplicações de IA foram premiadas com o Prêmio Nobel de Química por desenvolver algoritmos que podem prever a estrutura de proteínas de qualquer sequência de genes. Há três anos, uma empresa em Londres publicou a estrutura de 250 milhões de proteínas. Isso ajuda os pesquisadores para que não precisem determinar cada estrutura experimentalmente. A IA continuará tendo um impacto profundo em várias áreas de pesquisa, ajudando a guiar descobertas e a melhorar o desenvolvimento terapêutico.
Como a pesquisa básica contribui para o desenvolvimento de novas estratégias de diagnóstico
e terapia?
Um bom exemplo é a pesquisa sobre o câncer. A compreensão dos genes envolvidos no câncer revolucionou o desenvolvimento de tratamentos. Antes, as abordagens eram muito crudas, muitas vezes envolvendo toxinas que matavam células que se dividiram indiscriminadamente, com efeitos colaterais graves. Hoje, podemos direcionar genes e proteínas específicos em tumores com muito mais precisão, tornando os tratamentos mais eficazes e menos prejudiciais. O conhecimento da genética do câncer melhorou dramaticamente a quimioterapia e outras terapias.
Quão importante é a colaboração entre ciência básica produzida em universidades e a indústria para o avanço da pesquisa biomédica, especialmente para doenças complexas?
A colaboração é crucial. A indústria biotecnológica nos Estados Unidos surgiu da ciência acadêmica, com muitos cientistas se tornando empreendedores e criando empresas. Isso teve um grande impacto econômico. Nas universidades agora existem divisões dedicadas ao desenvolvimento de medicamentos, onde jovens pesquisadores fazem ciência básica e a traduzem em terapias potenciais. Há uma forte colaboração entre academia e indústria. No entanto, acredito que tudo o que é feito na universidade, mesmo que eventualmente leve a um medicamento, deve ser aberto e publicável. O trabalho deve ser acessível a todos. Não devemos permitir que projetos secretos sejam desenvolvidos fora da comunidade acadêmica.
Como o senhor enxerga o papel da ciência de forma geral?
A ciência é essencial, e é nosso trabalho comunicar seu valor para o público. Muitas pessoas não entendem ou não acreditam, mas ela tem benefícios práticos incríveis. Precisamos enfatizar que a ciência não é apenas para poucos curiosos — ela tem um impacto amplo. É nossa responsabilidade fazer o público entender os benefícios tangíveis da ciência, mesmo quando não a compreendem completamente. Essa é uma luta contra a ignorância, e devemos continuar avançando, uma pessoa de cada vez.
Observando sua experiência, o que o senhor diz para os jovens pesquisadores brasileiros?
Para os estudantes interessados em ciência, a melhor maneira de aprender é entrar em um laboratório e trabalhar diretamente com os professores. Não basta apenas fazer aulas, ler livros e textos. A verdadeira ciência envolve frustrações diárias dos experimentos que não funcionam ou que não dão os resultados esperados. Se você realmente quer fazer ciência, tem que estar disposto a correr riscos e aceitar falhas. Nem todos conseguem lidar com isso, mas para aqueles que encontram satisfação nas sucessivas descobertas, é uma carreira gratificante. Somente se você se envolver de verdade com a pesquisa, poderá entender o que é realmente a descoberta.
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