Conta o livro bíblico da Revelação que o fim do mundo é anunciado por quatro cavaleiros, cada um deles simbolizando uma das mazelas da humanidade: conquista, guerra, fome e morte. Em tempos de quebras sucessivas de recorde de calor, associadas a secas, enchentes, tufões e incêndios frequentes, não é de se estranhar a declaração do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, de que o planeta se aproxima do apocalipse.
A Terra já não aguenta as crescentes demandas humanas: destruição de habitat, exploração abusiva de recursos, poluição, mudanças climáticas e espécies invasoras são, hoje, os cavaleiros do fim do mundo. A referência bíblica foi feita por Inger Andersen, diretora-executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), ao citar os fatores-chave da crise ambiental.
O tempo para evitar uma hecatombe está quase esgotando, afirma a ciência. A Conferência do Clima (COP29), que começará dia 11 em Baku, no Azerbaidjão, tem uma pauta exaustiva pela frente. "O tempo é essencial. A sobrevivência do nosso planeta — e a nossa própria sobrevivência — está em jogo", disse António Guterres. O alerta, porém, parece não ter sido ouvido na Conferência da Biodiversidade (COP16), encerrada ontem em Cali, na Colômbia.
Faltou quórum no fim da cúpula e, no balanço final, houve poucos avanços nas metas do Marco Temporal de Biodiversidade de Kunming-Montreal, equivalente ao Acordo de Paris, do clima. O fracasso foi tamanho que, embora a presidente da COP17, a ministra do Meio Ambiente colombiana, Susana Muhamad, tenha declarado o fim do evento, o porta-voz da Convenção da Biodiversidade da ONU, David Ainsworth, disse que o encontro foi apenas suspenso, sem data definida para continuar.
Durante 12 dias, representantes de quase 200 países estiveram em Cali na Colômbia, para dar andamento ao ambicioso plano aprovado em 2022, na COP de Montreal, de salvar a biodiversidade do planeta. O documento anterior estabeleceu 23 metas para garantir que, até 2030, 30% da Terra esteja protegida, e 30% de ecossistemas degradados, recuperados. Porém, o evento, esvaziados de líderes, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que não compareceu, não chegou perto de atender as expectativas.
Repetindo o imbróglio das conferências do clima, o fundo de proteção e recuperação da biodiversidade trancou a pauta da COP, que se arrastou por um dia a mais do que o planejado e acabou com pouquíssimos delegados, a ponto de ser encerrada por falta de quórum. "Como consequência dessa suspensão, espera-se uma nova rodada (COP16.2) o mais breve possível para que os diálogos entre as partes sobre itens fundamentais na agenda sejam concluídos e o relatório final possa ser aprovado", comentou Michel Santos, gerente de Políticas Públicas do WWF-Brasil,
O documento de Montreal previa o financiamento, pelos países mais ricos, que se desenvolveram em boa parte à custa da exploração de recursos de suas ex-colônias, de US$ 20 bilhões (R$ 115 bilhões) anuais às nações em desenvolvimento. O dinheiro integra os recursos globais de US$ 200 bilhões (R$ 115,6 bilhões). Mas ninguém quis pagar a conta. A saída foi criar um mecanismo de financiamento provisório, o Fundo do Marco Global de Biodiversidade (GBFF), totalizando US$ 407 milhões.
Além disso, foi criado o Fundo de Cali para a Segurança Digital da Informação (DSI) sobre recursos genéticos, financiado por contribuições de empresas dos setores econômicos, como farmacêutico, cosmético e biotecnologia, que se beneficiam direta ou indiretamente da pesquisa. Povos indígenas comemoraram que 50% dos recursos serão utilizados para proteger as comunidades locais e tradicionais, incluindo afrodescendentes. Essa foi considerada uma conquista do Brasil que, ao lado da Colômbia, brigou pela pauta. "Os povos indígenas são a solução", comentou o brasileiro Txai Suruíi, coordenador do Movimento de Jovens Indígenas.
Houve avanços também na proteção dos oceanos. "Na madrugada de sábado, foi aprovado o Programa de Trabalho para Biodiversidade Marinha e Costeira e o Programa de Trabalho para Biodiversidade e Clima, indispensáveis para a implementação do Marco Global da Biodiversidade em 70% do nosso planeta", comentou Marina Corrêa, analista de conservação do WWF-Brasil. A avaliação dos especialistas é que não será possível esperar a COP17, da Armênia, daqui a dois anos para avançar, nas pendências da biodiversidade. A expectativa é que a conferência climática do Azerbaijão, a COP29, que começa dia 11, e a COP30, em Belém, resolvam alguns dos espinhos que ficaram em Cali.
Saiba Mais
Vilões da crise ambiental
Destruição do habitat
Cerca de 75% da superfície terrestre sofreu uma degradação significativa causada por humanos, incluindo florestas desmatadas e ecossistemas urbanizados ou convertidos em terras cultiváveis. Desde 1990, cerca de 420 milhões de hectares de floresta foram perdidos para outros usos da terra, especialmente para o setor agrícola, responsável por 85% do risco de extinção de 28 mil espécies. Sessenta e seis por cento dos oceanos são afetados por atividades humanas.
Sobre exploração de recursos
90% dos estoques de peixes marinhos do mundo estão totalmente explorados, sobre explorados ou esgotados. Para atender às atuais demandas humanas, o mundo precisa de 1,75 planeta à sua disposição. Trinta e três por cento dos solos do mundo estão moderadamente a altamente degradados, 90% poderão estar degradados até 2050.
Poluição
Tem efeitos devastadores em habitats de água doce e marinha. A poluição marinha por plástico aumentou 10 vezes desde 1980, afetando pelo menos 267 espécies de animais, incluindo 86% das tartarugas-marinhas, 44% das aves marinhas e 43% dos mamíferos marinhos. Globalmente, a deposição de nitrogênio na atmosfera é uma das ameaças mais sérias à integridade da biodiversidade global.
Crise climática
Desde 1980, as emissões de gases de efeito estufa dobraram, aumentando as temperaturas médias globais em pelo menos 0,7ºC, afetando espécies e ecossistemas ao redor do mundo. Os aumentos de temperatura induzidos pelas mudanças climáticas podem ameaçar até uma em cada seis espécies no mundo.
Espécies invasoras
Espécies exóticas contribuíram para quase 40% de todas as extinções de animais desde o século 17. Perdas ambientais devido a pragas introduzidas no Brasil, Austrália, Índia, África do Sul, Reino Unido e Estados Unidos são estimadas em mais de US$ 100 bilhões por ano.
Fonte: Organização das Nações Unidas (ONU)
Entrevista // Marco Moraes
Autor do livro Planeta Hostil (Matrix Editora), no qual descreve como as ações humanas podem tornar a Terra inóspita, o geólogo Marcos Moraes, que passou quatro décadas no Centro de Pesquisa da Petrobras (Cenpes) fala sobre a crise da biodiversidade, e do clima. Em entrevista ao Correio, alerta: "Meta de Paris não será cumprida".
As pautas da COP da biodiversidade e do clima estão inter-relacionadas?
Sim, ainda que parcialmente. A crise da biodiversidade, que pode levar os humanos a provocarem a sexta grande extinção de espécies da história geológica é provocada por diversos fatores, entre os quais as mudanças climáticas. Nesse caso, o aquecimento da atmosfera e das águas dos oceanos faz com que as espécies tenham que migrar em busca de condições mais favoráveis. No caso das espécies terrestres, os corredores de vegetação nativa que possibilitam essa migração já foram em grande parte descontinuados pela ocupação urbana e agrícola, de modo que muitas espécies ficam prisioneiras dos locais onde estão e podem não se adaptar às novas condições climáticas, e assim desparecer.
E quanto aos oceanos?
Nos oceanos, onde, a princípio, não há barreiras à migração, o problema é que a maior parte das espécies vivem em águas frias, nas regiões polares, incluindo organismos que são a base de muitas cadeias alimentares marinhas, como o krill. Se as águas polares aquecerem, esses organismos não terão para onde migrar, e podem se extinguir, inviabilizando boa parte da vida marinha nessas regiões. Nas águas tropicais, onde recifes de corais constituem um ecossistema onde vive cerca de 25% da vida marinha, o aquecimento das águas está causando um processo chamado de branqueamento, que resulta do rompimento da relação simbiótica entre os corais e algas. Outro fator relevante de destruição da vida marinha é a pesca predatória.
Qual a principal ameaça à biodiversidade?
O maior causador da extinção de espécies no mundo é o nosso sistema de produção de alimentos, devido à destruição dos ecossistemas naturais pela expansão das áreas de agricultura e pecuária, degradação progressiva dos solos e contaminação dos solos, águas e ar pelos rejeitos agrícolas. A expansão da agricultura industrial (incluindo a criação de animais), que continua em ritmo acelerado, é responsável por cerca de 70% da perda da biodiversidade terrestre. A expansão urbana é outra causa importante de destruição de ecossistemas e, consequentemente, da extinção de espécies.
A meta de temperatura do Acordo de Paris ainda poderá ser atingida?
Não. As concentrações atmosféricas de gases do efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global causado pelo homem, atingiram níveis sem precedentes no último ano, afirma a Organização Meteorológica Mundial. Como estamos próximos a atingir o limiar de 1,5°C de aquecimento, esses dados indicam que a humanidade não vai conseguir limitar o aquecimento nem mesmo em 2°C, que é considerado um aquecimento extremamente perigoso. Esse nível de aquecimento pode acelerar de forma dramática os eventos climáticos extremos, os danos à biodiversidade, à produtividade agrícola e à saúde humana, podendo até mesmo inviabilizar a ocupação permanente de grandes áreas do planeta.