Saúde mental e tecnologia

Cogumelos mágicos e multiuso contra tumores e a favor do cérebro

Esses organismos apresentam resultados positivos no combate ao câncer, aos transtornos mentais, sobretudo depressão e bipolaridade, e até em substituição de materiais, como couro natural e sintético, além da sustentabilidade do lixo

Do prato de comida para a ciência, cogumelos têm sido promissores no campo da medicina, oferecendo avanços para o tratamento de câncer e condições psiquiátricas resistentes a terapias convencionais. Na busca por equilíbrio entre consumo e natureza, esses organismos também se mostram eficientes na substituição de materiais, como os couros animal e sintético, e na degradação de lixo.

Um estudo conduzido por pesquisadores da China Pharmaceutical University, publicado na Angewandte Chemie, revelou uma classe de compostos químicos isolados de um fungo que podem ser a chave para novos tratamentos contra câncer colorretal. A equipe identificou e caracterizou heterodímeros de terpeno-nonadrídeo, uma classe inédita de metabólitos, durante o estudo do fungo Bipolaris victoriae S27, que vive em plantas.

Os pesquisadores cultivaram o fungo em diferentes condições para observar suas respostas metabólicas. O resultado foi a descoberta de 12 estruturas químicas desconhecidas, pertencentes aos heterodímeros terpeno-nonadrídeos. Desses compostos, nove demonstraram eficácia no combate às células de câncer colorretal, com destaque para o bipoterpride nº 2, que teve desempenho equivalente ao da cisplatina, um dos medicamentos quimioterápicos mais usados, porém sem os efeitos colaterais da quimioterapia.

Felix Blei/Leibniz-HKI - Psilocybe cubensis, cogumelo comumente utilizado em pesquisas

O mecanismo de ação do bipoterpride nº 2 está na inibição da enzima DCTPP1 — que promove a resistência ao tratamento. Ao coibir essa substância, o composto consegue interromper o metabolismo patológico das células tumorais, oferecendo uma nova esperança no tratamento do câncer colorretal.

Raquel Alves dos Santos, bióloga e professora do programa de pós-graduação em ciência da Universidade de Franca, detalha que, ao modificar o microambiente tumoral pela inibição da enzima DCTPP1 as biporterpridas podem tornar as células cancerosas mais suscetíveis ao ataque imunológico. "A literatura sobre imunoterapias combinadas com terapias farmacológicas ressalta como essa combinação é promissora para o tratamento do câncer."

Transtornos

Enquanto alguns cogumelos mostram seu potencial no combate ao câncer, outra linha de pesquisa revela o papel desses fungos no tratamento de condições psiquiátricas como depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e esquizofrenia. Um estudo realizado por uma equipe da Universidade Hebraica de Jerusalém sugere que o extrato de cogumelo contendo psilocibina pode ser mais eficaz que a psilocibina sintetizada quimicamente, com efeitos mais potentes e prolongados na neuroplasticidade, essencial para a regeneração das conexões entre células nervosas.

A pesquisa inicial, divulgada na revista Molecular Psychiatry e realizada com camundongos, investigou o impacto do extrato de cogumelo no aumento das proteínas sinápticas relacionadas à neuroplasticidade. Para os cientistas, os resultados são promissores para condições psiquiátricas que afetam milhões de pessoas. Estima-se que até 40% dos pacientes com depressão e transtorno obsessivo-compulsivo não têm efeitos com os medicamentos disponíveis.

A descoberta de que o extrato de cogumelo pode aumentar a neuroplasticidade de forma mais eficiente do que a psilocibina sintética destaca o potencial dos compostos naturais. A análise metabolômica dos extratos mostrou diferenças marcantes em relação à psilocibina sintetizada, revelando um perfil metabólico distinto, que inclui a redução do estresse oxidativo e o aumento da produção de energia celular.

No caso dos cogumelos, o "efeito entourage" — efeito sinérgico de vários compostos presentes no organismo — parece ser fundamental para a eficácia terapêutica. Embora o controle da produção de extratos naturais tenha sido um obstáculo no passado, o cultivo controlado permite a criação de extratos replicáveis, viabilizando seu uso em larga escala na medicina.

Adiel Rios, psiquiatra, pesquisador em transtorno bipolar e depressão no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo e membro titular da Associação Brasileira de Psiquiatria, destacou que os efeitos prolongados do extrato de cogumelo com psilocibina têm despertado interesse da ciência. "Integrar extratos naturais de cogumelos na psiquiatria moderna é um campo de pesquisa que apresenta oportunidades e desafios significativos. A evidência científica, embora em expansão, ainda requer maior robustez. Estudos recentes demonstraram resultados encorajadores no tratamento da depressão resistente, mas a necessidade de ensaios clínicos mais amplos e rigorosos é evidente."

Alberto de Andrade Reis Mota, doutor em química e professor do curso de farmácia do centro universitário Uniceplac, em Brasília, frisa que, apesar dos efeitos benéficos descobertos pelos cientistas, o uso de cogumelos por conta própria representa inúmeros riscos. "A dosagem do ativo varia entre diferentes espécies de cogumelos, e até mesmo entre colheitas da mesma espécie, dificultando prever a potência e os efeitos. Isso pode levar a experiências imprevisíveis e potencialmente perigosas, incluindo episódios de ansiedade, paranoia e psicose temporária. Em contraste, ensaios clínicos são conduzidos em ambientes controlados, em que a dosagem é cuidadosamente calibrada e os participantes são monitorados."

Eficientes da reciclagem

O acúmulo de resíduos plásticos no planeta é uma preocupação ambiental crescente, visto que esses produtos podem levar centenas de anos para se degradar. Diante desse cenário, a pesquisa em biodegradação tem avançado, buscando alternativas para a gestão inadequada desses resíduos. Nesse contexto, algumas substâncias capazes de consumir esses materiais, como as monooxigenases líticas de polissacarídeos (LPMOs), secretadas por fungos, como alguns cogumelos, surgem como uma solução promissora, projetadas para interagir com diferentes polímeros sintéticos e facilitar sua degradação e reciclagem.

As LPMOs são enzimas essenciais na degradação de biopolímeros, como celulose e lignina. Cientistas têm explorado a engenharia modular dessas enzimas. Essa personalização visa aumentar sua eficácia na decomposição de diversos tipos de materiais.

Kyushu University/Isobe lab - Enzimas degradadoras são usadas para combater a poluição

Em uma pesquisa recente, liderada pelo Instituto Nacional de Pesquisa em Agricultura, Alimentação e Meio Ambiente, da França, cientistas realizaram uma série de experimentos para avaliar a capacidade de ligação de LPMOs alterados a diferentes plásticos. Utilizando diversas técnicas, os pesquisadores observaram que as modificações nas enzimas influenciam positivamente sua capacidade de degradação.

Os resultados, publicados na revista Chem & Bio Engineering, demonstraram que as LPMOs modificadas se mostraram mais eficientes na interação com os polímeros, corroborando a eficácia da engenharia modular.

Além disso, a publicação ressalta a importância de compreender as propriedades físico-químicas dos plásticos, como a cristalinidade e hidrofobicidade, que dificultam sua degradação biológica. Segundo os autores, adaptar as LPMOs para superar essas barreiras é crucial para o desenvolvimento de soluções biotecnológicas viáveis em larga escala. Além disso, a inspiração em processos naturais de degradação de biomassa também é um foco central na busca por novas estratégias de reciclagem de plásticos.

Os resultados mostram que a reciclagem de plásticos pode ser realizada de maneira eficiente, diminuindo a quantidade de resíduos que polui aterros e o meio ambiente. (IA)

PALAVRA DE ESPECIALISTA

Novas vias de ação

"A maioria dos medicamentos orais, especialmente antidepressivos, atua principalmente nas monoaminas, como serotonina e dopamina. No entanto, esses novos tratamentos com extratos de cannabis e cogumelos contendo psilocibina não se restringem apenas a essas vias. Já existem medicações com perfis multimodais que atuam em diversas vias cerebrais, melhorando a produção de neurotransmissores e facilitando a comunicação entre neurônios. Um dos desafios é a produção, pois os cogumelos são muito sensíveis a diversos fatores como tipo de solo, concentração de gás carbônico, oxigênio e exposição à luz. A qualidade do substrato onde são cultivados é crucial, o que representa um desafio para garantir a qualidade do produto final."

Fábio Leite, psiquiatra do hospital Santa Lúcia, em Brasília

 

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