Logo no início da pandemia de covid-19, em 2020, quando ainda pouco se sabia sobre a doença que matou 20 milhões de pessoas, uma coisa parecia certa: os danos do coronavírus extrapolavam os pulmões, afetando, significativamente, a saúde cardiovascular. Passados quase cinco anos, não existem mais dúvidas de que, entre as múltiplas sequelas da infecção, está um aumento na prevalência de doenças que afetam o sistema circulatório, especialmente em pacientes que tiveram quadros mais graves.
Publicada neste mês, uma pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia, em Los Angeles, com dados de pessoas que tiveram covid-19 antes da disponibilidade das vacinas, demonstrou que o risco de infarto, acidente vascular cerebral (AVC) e morte é duas vezes maior, até três anos depois da infecção. A associação foi mais forte em pacientes hospitalizados, mas mesmo aqueles com a doença moderada, a probabilidade de ataque cardíaco e derrame a longo prazo foi elevada, em relação a quem não foi afetado pelo coronavírus.
Os autores concluíram que o histórico da infecção pelo vírus Sars-CoV-2 tem um impacto no coração e no cérebro semelhante ao de diabetes. "Essa é uma informação nova, que muda o conceito", informa o membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Protásio Lemos da Luz, pesquisador sênior do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo (InCorUSP). "Até agora, a gente pensava que a covid leve ou moderada era um episódio mais restrito. Esse estudo demonstra que não, que os efeitos podem ser a longo prazo, e são efeitos importantes."
Outra descoberta do artigo, baseado em registros de saúde e mortalidade de 10 mil adultos do Reino Unido, é que os tipos sanguíneos A, B e AB também aumentam o risco de doenças cardiovasculares (DCVs) em pacientes de covid que não tiveram acesso às vacinas. Essa informação reforça o impacto da genética na vulnerabilidade ao Sars-CoV-2 e vai ao encontro de estudos que associam o sangue tipo O à menor probabilidade de tromboses.
Mecanismos
Os mecanismos biológicos que relacionam a covid-19 ao risco aumentado de doenças cardiovasculares ainda são investigados. Mas já se conhece boa parte deles. "A covid-19 pode desencadear uma inflamação generalizada no organismo, resultando em uma maior formação de coágulos sanguíneos, capazes de bloquear artérias no cérebro e provocar AVC", explica Maciel Pontes, neurologista no Hospital de Base de Brasília. "Além disso, a infecção pode exacerbar condições cardiovasculares preexistentes, agravando o risco", explica.
Natalia Eberhardt, pesquisadora de pós-doutorado do Hospital Universitário NYU Langone Health, em Nova York, revela que o coronavírus também pode deflagrar uma resposta imunológica perigosa diretamente em placas de gordura que revestem os maiores vasos sanguíneos do coração. A condição é conhecida como aterosclerose. Eberthardt participou de um estudo que buscou compreender os mecanismos específicos do impacto do Sars-CoV-2 em pessoas que sofrem do problema, caracterizado por uma inflamação crônica nas artérias.
Placas
Os pesquisadores examinaram amostras do tecido arterial de pacientes que morreram de covid-19 entre maio de 2020 e maio de 2021. Também coletaram placas retiradas de pacientes que fizeram cirurgia para removê-las das artérias. Esse material foi infectado pelo coronavírus em laboratório, para que os cientistas pudessem visualizar diretamente a ação do Sars-CoV-2 sobre os depósitos gordurosos.
Ambos os experimentos mostraram que, em resposta à infecção, células de defesa chamadas macrófagos liberam citocinas, proteínas que convocam o sistema imunológico a atacar o invasor, mas que, cronicamente, podem provocar lesões graves. Duas das substâncias identificadas pelos cientistas são a interleucina-1 beta e interleucina-6, já associadas anteriormente a ataques cardíacos.
Ligação
"Nossas descobertas fornecem, pela primeira, vez uma ligação mecanicista direta entre a infecção por covid-19 e as complicações cardíacas que ela provoca", diz Eberhardt. "O vírus cria um ambiente altamente inflamatório que pode facilitar o crescimento da placa, a ruptura e o bloqueio do fluxo sanguíneo para o coração, cérebro e outros órgãos importantes."
Os estudos também mostram que a vacinação é uma estratégia eficiente para reduzir os danos cardiovasculares associados ao vírus. Uma pesquisa publicada em setembro no European Heart Journal, com dados de toda a população adulta da Suécia — mais de 8 milhões de pessoas —, descobriu que, especialmente após três doses do imunizante, a chance de eventos como infarto, arritmia, acidente vascular cerebral e inflamação do tecido que reveste o músculo cardíaco foi até 30% menor, comparado a quem não foi vacinado.