Prevenção

Haja coração: como fatores de risco favorecem doenças cardiovasculares

Série do Correio mostra por que as doenças cardiovasculares são as que mais matam no mundo e revela como novos fatores de risco — mudanças climáticas e covid-19 — podem aumentar ainda mais a carga global de infarto e AVC, entre outras enfermidades

ataque cardíaco -  (crédito: Wikimedia/Divulgação )
ataque cardíaco - (crédito: Wikimedia/Divulgação )

Há pouco mais de uma década, os países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) assumiram o ambicioso desafio de reduzir, em 2025, 25% da incidência e da mortalidade precoce — antes dos 70 anos — de quatro doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Quando a meta foi estabelecida, sozinho, o grupo de enfermidades cardiovasculares era responsável por 60% dos óbitos por DCNTs. 

Faltando cerca de dois meses para a chegada do ano em que o objetivo deveria ser alcançado, o documento de acompanhamento mais recente da ONU, publicado em 2022, destaca: houve progressos, mas "nenhum país está no caminho" de atingir a meta.

Consideradas uma epidemia, as doenças cardiovasculares (DCVs) são as mais incidentes no mundo e também as que mais matam globalmente. Em 30 anos, houve um aumento de 60% nos óbitos por essas causas, e as projeções para 2050 são alarmantes. De hoje a terça-feira, uma série do Correio mostra os desafios para reduzir a carga global das DCVS, em um momento de fatores de risco emergentes. 

Prevenção 

A boa notícia é que a tendência pode ser freada. Segundo estudos, até 80% dos casos de infarto e acidente vascular cerebral (AVC) — as duas principais causas de morte por DCVs — são evitáveis com mudanças no estilo de vida. "Prevenção é o conceito mais importante. Devemos criar condições para impedir a ocorrência das doenças, e não só as tratar", define o membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Protásio Lemos da Luz, cardiologista e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP).

Amanda Gonzales, cardiologista do Hospital Sírio-Libanês, destaca a necessidade de ações públicas urgentes para reduzir as doenças cardiovasculares. "Não sabemos se é possível mudar o cenário global, mas, individualmente, podemos melhorar, e muito, se começarmos agora", diz. Segundo a WHF, entre os principais fatores de risco modificáveis, estão colesterol, alto índice glicêmico, obesidade, tabagismo, sedentarismo e hipertensão. 

Não há, porém, receita fácil para reduzir as doenças cardiovasculares. Além do envelhecimento da população e da epidemia de obesidade, novos fatores de risco, como sequelas da covid-19 e efeitos fisiológicos das mudanças climáticas, somam-se aos já conhecidos. 

"Entre os jovens, por exemplo, há um novo fator de risco; o consumo excessivo de cafeína, encontrada em bebidas energéticas e suplementos", alerta o cardiologista Murilo Morhy, que foi professor e diretor do Hospital Universitário Bettina Ferro de Souza, da Universidade Federal do Pará. "Esse hábito tem levado a um aumento de arritmias, que podem evoluir para parada cardíaca. Se não lidarmos com o problema de forma preventiva, veremos um aumento na prevalência de doenças cardiovasculares em idades mais jovens", destaca.

Conhecimento 

Para Renato David, cardiologista do Instituto do Coração de Taguatinga (ICTCor), uma das dificuldades na prevenção é a falta de conhecimento da população sobre os fatores de risco. "A grande maioria dos pacientes hipertensos, diabéticos e com colesterol alterado só vai ter o conhecimento de que são portadores de alguma comorbidade após alguns sintomas ou complicações. Ou seja, quando a situação já é tardia e há prejuízo da qualidade de vida e risco aumentado de morte." 

Até mesmo entre universitários da área de saúde, a percepção não é das melhores. Uma pesquisa apresentada no VI Congresso Brasileiro de Educação em Fisioterapia com 320 estudantes da Universidade Federal do Paraná (UFPR) constatou que quase metade não sabia que hipertensão é fator de risco cardiovascular. 

Já um estudo publicado nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia com pacientes de hipercolesterolemia grave — condição hereditária na qual o fígado não metaboliza o LDL, ou "colesterol ruim" — mostrou que somente 18% acreditava ter risco alto para doenças cardiovasculares. O neurologista Rodrigo Silveira, do Hospital Icaraí, em Niterói, destaca que há desigualdades no acesso à informação e que, mesmo quando existe o conhecimento, há pessoas que preferem ignorá-lo. "Apesar da conscientização dos maus hábitos, ainda temos uma grande parcela da população consumidora de tabaco, álcool e outras drogas, que também aumentam o risco dessas doenças ocorrerem."

Emocional 

Além do enfrentamento aos fatores de risco bem estabelecidos, pesquisas mais recentes enfatizam o bem-estar emocional para reduzir a incidência e a mortalidade por doenças cardiovasculares. Práticas como meditação, ioga, caminhada na natureza e até fazer artesanato em grupo têm sido receitadas por médicos, com base em novos conhecimentos científicos.

Um estudo publicado na revista European Heart Journal, por exemplo, descobriu que a solidão pode impactar mais no risco de doenças cardiovasculares em pacientes com diabetes do que dieta ou sedentarismo. A pesquisa incluiu 18.509 adultos de 37 a 73 anos com o distúrbio metabólico, mas sem histórico de DCVs no início. Aqueles que relataram um índice alto de afastamento social tiveram uma chance até 26% de infarto e AVC no período de acompanhamento. 

"Cada vez mais as pesquisas mostram o impacto da saúde mental, das nossas relações interpessoais na doença cardiovascular. Isso afeta a saúde de várias formas, como alterações hormonais, inflamação e ativação do sistema adrenérgico (composto por hormônios, neurônios e receptores)", explica a cardiologista Amanda Gonzalez, do Hospital Sírio-Libanês. "Por isso, temos de olhar para todos os pilares quando pensamos em saúde cardiovascular."

Duas perguntas para Protásio Lemos da Luz, pesquisador sênior do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor/USP) e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC)

Por que as doenças cardiovasculares ainda são a principal causa de morte, mesmo se sabendo como evitá-las? 

Isso tem muito a ver com o chamado controle de fatores de risco, como hipertensão, diabetes, sedentarismo, dieta…  Acontece que a implementação desses programas é difícil porque implica mudanças de estilo de vida, e não é fácil as pessoas mudarem. A segunda coisa tem a ver com a chamada aderência ao tratamento. Em um ano, o número dos pacientes que seguem a orientação médica é muito pequeno, menos que 30%. Outro fator é que estamos tendo um problema de obesidade e diabetes que começa já na adolescência. Então, todas essas coisas são relacionadas a estilo de vida e, embora a gente tenha avançado muito no conhecimento da fisiopatologia da doença, a implementação daquilo que já foi descoberto tem sido difícil. Por fim, recentemente, com a pandemia, houve um aumento muito grande de alterações emocionais, como depressão e ansiedade. Criou-se um ambiente de preocupação e de incerteza, e isso está incidindo sobre as doenças cardiovasculares. 

As sociedades médicas estão considerando mais os fatores emocionais como estratégia de proteção?

Sim. Uma das terapêuticas mais utilizadas ultimamente é a terapia cognitivo comportamental (TCC), de duração mais curta, que procura focar determinados problemas atuais da pessoa. Muitas outras abordagens estão sendo implementadas com sucesso, e uma das mais consideradas é a espiritualidade. Essa é uma questão milenar, abordada por Aristóteles e filósofos orientais, mas, hoje, há um foco mais científico, com muitas pesquisas sobre o tema. As sociedades médicas procuram abordar a espiritualidade desde a formação médica, como um elemento importante para melhorar a qualidade de vida. (PO) 

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

postado em 20/10/2024 06:00
x