A combinação de bactérias que vivem na boca pode aumentar em até 50% o risco do carcinoma espinocelular de cabeça e pescoço, responsável por 90% dos casos de câncer nessa região. Alguns desses microrganismos são conhecidos por contribuírem para a doença periodontal, uma infecção grave na gengiva, que pode cair na corrente sanguínea. No Brasil, a incidência e a prevalência dessa neoplasia vem aumentando, com estimativa de 11.180 novos diagnósticos na cavidade oral e 6.470 na laringe, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca).
Em um artigo publicado ontem na revista Jama Oncology, pesquisadores do NYU Langone Health, em Nova York, analisaram a composição genética de microrganismos orais coletados de homens e mulheres saudáveis. Das centenas de bactérias diferentes rotineiramente encontradas na boca, 13 espécies demonstraram aumentar ou diminuir o risco de carcinoma espinocelular de cabeça e pescoço.
No geral, esse grupo foi associado a um risco 30% maior de desenvolvimento de câncer da boca e da garganta. Em combinação com outras cinco espécies frequentemente observadas em doenças gengivais, a probabilidade geral foi de 50%.
Biomarcadores
Apesar de estudos anteriores terem associado algumas bactérias do microbioma oral aos cânceres, os tipos exatos dos patógenos mais envolvidos ainda eram desconhecidos. "Nossas descobertas oferecem uma nova visão sobre a relação entre o microbioma oral e os cânceres de cabeça e pescoço", disse o autor principal do estudo, Soyoung Kwak, em nota. "Essas bactérias podem servir como biomarcadores para especialistas sinalizarem aqueles em alto risco", acrescentou Kwak, pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Saúde Populacional da NYU Grossman School of Medicine.
Segundo Kwaw, pesquisas anteriores descobriram algumas bactérias específicas em tumores de pessoas diagnosticadas com os cânceres de cabeça e pescoço. Agora, os pesquisadores se debruçaram em um número bem maior de amostras para explorar como microrganismos da flora oral podem, ao longo do tempo, contribuir para o risco futuro de tumores cancerígenos.
No artigo, a equipe publicou a maior e mais detalhada análise do tipo. Segundo Kwaw, o trabalho também está entre os primeiros a investigar se fungos comuns, como leveduras e mofos, que também compõem o microbioma oral, podem desempenhar um papel no risco de câncer, o que não foi constatado.
Bancos de dados
Os cientistas analisaram dados de três pesquisas em andamento, rastreando 159.840 moradores de todas as regiões dos Estados Unidos, para entender melhor como dieta, estilo de vida, histórico médico e muitos outros fatores estão associados ao câncer. As informações foram coletadas do Estudo de Prevenção do Câncer II da American Cancer Society; do Estudo de Rastreamento do Câncer de Próstata, Pulmão, Colorretal e Ovário; e do Estudo de Coorte da Comunidade do Sul.
Logo após a inscrição, os participantes utilizaram um enxaguante bucal, fornecendo amostras de saliva que preservaram os números e as espécies de micróbios para teste. Os pesquisadores, então, acompanharam os voluntários por cerca de 10 anos a 15 anos para registrar qualquer presença de tumores.
No estudo atual, foi analisado o DNA bacteriano e fúngico das amostras de saliva. Depois, os pesquisadores identificaram 236 pacientes diagnosticados com carcinoma espinocelular de cabeça e pescoço e compararam o material genético dos microrganismos ao de 458 pessoas selecionadas aleatoriamente, e que continuavam saudáveis. Fatores de risco, como idade, etnia, tabagismo e uso de álcool foram ajustados.
Hábitos
Segundo Richard Hayes, coautor sênior do estudo, os resultados são "um motivo a mais para manter os bons hábitos de higiene oral". "Escovar os dentes e usar fio-dental pode não apenas ajudar a prevenir a doença periodontal, mas também pode proteger contra o câncer de cabeça e pescoço."
Anna Karolina Ximenes, dentista da IGM Odontopediatria, explica que, para que a microbiota oral influencie o risco de doenças, é necessário um desequilíbrio da flora. "Geralmente, o desequilíbrio é causado por fatores como má higiene oral, dieta inadequada, estresse e uso de medicamentos contínuos, levando a um aumento dos micro-organismos patógenos", explica. "Esse processo culmina em uma microbiota desbalanceada, que não só causa doenças orais, mas também influencia diretamente a saúde sistêmica."
Os pesquisadores do NYU Langone Health ressaltam que o estudo foi projetado para identificar correlações entre o risco de câncer e determinadas bactérias na boca, mas não estabelece uma relação direta de causa e efeito, o que será assunto para próximas pesquisas. "Agora que identificamos as principais bactérias que podem contribuir para essa doença, planejamos explorar os mecanismos que permitem que elas o façam e de que maneiras podemos intervir melhor", diz Richard Hayes.
A cirurgiã-dentista Ianara Pinho, pós-graduada em Odontopediatria, Radiologia e Imagiologia, acredita que o estudo contribuirá para a prevenção dos cânceres de cabeça e pescoço. "A identificação precoce de bactérias isoladas e complexos bacterianos associados a biomarcadores de risco e outros fatores podem ajudar a identificar o potencial desenvolvimento (do câncer) e, uma vez identificados, auxiliar na prevenção da doença."
Oncologista e líder nacional da especialidade de tumores de cabeça e pescoço da Oncoclínicas, Pedro De Marchi esclarece que os mecanismos pelos quais a disbiota oral pode favorecer o surgimento de tumores ainda precisa ser elucidado. "Mas, de forma geral, infecções crônicas levam à inflamação crônica. Em um tecido inflamado, as células morrem e nascem de uma forma muito mais acelerada. Quando isso acontece de forma crônica, aumenta a chance de haver algum erro na replicação celular", explica o médico, que participa, em Brasília, do 12º Congresso Internacional Oncoclínicas Dana-Farber Cancer Institute.
De Marchi diz que o principal fator de risco para os tumores de cabeça e pescoço é o tabagismo. "Eventualmente, quando a gente tem alcoolismo junto do tabagismo, o risco é ainda maior." Além disso, alguns vírus podem levar ao desenvolvimento de cânceres nesses locais, como o HPV. "Há um grupo de tumores, principalmente da cavidade oral, que não está relacionado a tabagismo nem a infecções por vírus. Não sabemos exatamente a causa. Talvez aqui (nas bactérias identificadas pelo estudo) esteja uma das possíveis explicações. Às vezes, o paciente não tem nenhum desses fatores que comentei anteriormente e ainda assim desenvolve esse tipo de tumor, que é agressivo e acomete os pacientes jovens", explica.