Esperança

Cirurgia inédita, transplante de olho inteiro surpreende médicos

Cirurgia inédita, em Nova York, envolve 140 profissionais para reconstituir parte da face de um homem, atingido por choque em um cabo de alta tensão. Um ano depois, o órgão manteve o fluxo sanguíneo e as células sensíveis à luz estão intactas

 Cirurgia de 21 horas, seguida por 17 dias na UTI: operação nunca havia sido realizada e, agora, passa por aperfeiçoamento -  (crédito: Joe Carrota/NYU Langone/Divulgação )
Cirurgia de 21 horas, seguida por 17 dias na UTI: operação nunca havia sido realizada e, agora, passa por aperfeiçoamento - (crédito: Joe Carrota/NYU Langone/Divulgação )

Um ano depois de realizar o primeiro transplante de face parcial incluindo um olho inteiro, o paciente submetido à cirurgia tem uma rotina normal, e o órgão se adaptou melhor do que os médicos imaginavam. Em um artigo publicado na revista Jama, uma equipe do hospital NYU Langone Health, em Nova York, revelou os resultados de longo prazo do procedimento inédito, realizado em maio de 2023.

O militar norte-americano Aaron James, 46 anos, sobreviveu a um choque de 7,2 mil volts em 2021, quando o rosto tocou acidentalmente em um fio de alta tensão energizado. O homem perdeu o olho esquerdo e teve ferimentos extensos no braço, nariz, lábios, dentes, bochecha e queixo. Ele passou por várias cirurgias reconstrutivas até que, no ano passado, surgiu a oportunidade de passar pelo transplante parcial do rosto. 

Os cirurgiões responsáveis pelo procedimento afirmam que, a longo prazo, o olho transplantado manteve a pressão e o fluxo sanguíneo normais, diferentemente do que costuma ocorrer em modelos animais, em que há um encolhimento significativo do órgão. Embora o paciente não tenha recuperado a visão, um teste que mede a resposta elétrica da retina à luz, a eletrorretinografia, mostrou uma resposta fotorreceptora. 

Células

"O exame indica que os bastonetes e cones — células nervosas sensíveis à luz no olho — sobreviveram ao transplante", diz Eduardo D. Rodriguez, autor sênior do estudo e cirurgião que liderou a equipe de mais de 140 profissionais no procedimento. Ele explica que a resposta elétrica converte a luz em sinais que poderiam ser interpretados pelo cérebro e convertidos em visão, o que abre a esperança de futuros transplantes de olho inteiro com objetivo de restaurar a visão. 

"Estamos realmente surpresos com a recuperação de Aaron, sem episódios de rejeição", admite Rodriguez. "Nossas descobertas obtiveram resultados iniciais promissores, estabelecendo uma base para mais avanços e pesquisas contínuas. Fizemos o trabalho de transplantar um olho. Precisamos trabalhar mais para entender como restaurar a visão do olho, o que já estamos fazendo."

Apesar da preservação do órgão, no exame o cérebro de Aaron não enxergou a luz. Além disso, os médicos observaram que danos no nervo óptico resultaram em alguma perda do tecido da retina durante a recuperação do paciente. Porém, eles afirmam que estão animados com o resultado e com a perspectiva de futuros transplantes oculares totalmente funcionais. 

Viabilidade

"Nosso estudo é o primeiro a mostrar a viabilidade do transplante de olho inteiro em conjunto com um transplante de rosto", disse, em nota, a especialista em retina Vaidehi S. Dedania, oftalmologista de Aaron. Os resultados que estamos vendo após esse procedimento são bastante incríveis e podem abrir caminho para novos protocolos clínicos e inspirar mais pesquisas sobre transplantes complexos envolvendo órgãos sensoriais críticos."

Hoje, pacientes que perdem o globo ocular podem fazer a reconstrução da cavidade do olho com próteses removíveis. "Essa prótese dá um aspecto melhor para a pessoa, mas não temos como recuperar a visão", explica Fabíola Gavioli Marazato, oftalmologista do CBV-Hospital de Olhos, em Brasília. "A grande barreira no caso de um transplante é fazer a ligação do olho transplantado com o nervo óptico para que haja uma função visual", diz. 

Em entrevista ao site do hospital NYU Langone Health, Aaron James contou os avanços passado um ano do procedimento. "Estou praticamente de volta a ser um cara normal, fazendo coisas normais. Este foi o ano mais transformador da minha vida. Recebi o presente de uma segunda chance e não desvalorizo um único momento", contou. Além de se livrar dos olhares de estranhos na rua, o veterano militar destacou o prazer de coisas pequenas, como mastigar alimentos sólidos e sentir cheiros. 

 

Duas perguntas para Samuel Duarte, oftalmologista especialista em retina, do Visão Hospital de Olhos

oftalmologista especialista em retina, do Visão Hospital de Olhos

Quais as principais causas

da perda do olho?

A principal causa de retirada e perda do globo ocular são os traumas perfurantes, explosivos, com lesões graves. Outro motivo são os tumores oculares, como melanomas, retinoblastomas e sarcomas. Algumas vezes, temos de remover e, para esses pacientes, não há tratamento. Usamos próteses, às vezes muito semelhantes ao olho; em outros casos, conseguimos manter a estrutura ocular e preencher com uma bolinha de silicone, mas são todos recursos artificiais.  

Clinicamente, o resultado do estudo é um avanço, apesar de o paciente não ter recuperado a visão?

Essa cirurgia que a equipe do NYU Langone conseguiu fazer, de transplante de olho inteiro, é incrível, mesmo sem ter havido a recuperação visual. Só de terem conseguido manter a estrutura ocular, sem rejeição, é algo muito curioso. O que dificulta bastante o resultado cirúrgico é que, em primeiro lugar, a vascularização da retina é intensa. Onde passa muito sangue há muitas células de defesa, então a rejeição é grande. Além disso, tem a dificuldade de se fazer a conexão com o nervo óptico — reconectar o tecido óptico é muito difícil. No futuro, fazer um transplante de olho inteiro, conseguindo uma nova ligação entre o nervo óptico do paciente e o nervo doado, talvez resulte em um olho funcional. É uma tecnologia incrível e muito promissora. Pelo visto, não está tão longe assim. 

Chances de testar novas tecnologias

Em uma das cirurgias reconstrutivas à qual foi submetido, o veterano militar Aaron James perdeu o olho esquerdo, afetado por uma dor intensa devido à lesão consequente do acidente elétrico. O cirurgião Eduardo Rodriguez instruiu o colega que fez o procedimento a cortar o nervo óptico o mais próximo possível do globo ocular, para melhorar as chances de um transplante. 

Rodriguez conta que a equipe do hospital NYU Langone, em Nova York, tomou a decisão de prosseguir com o transplante de olho inteiro em combinação com o rosto, depois de ouvir a família de James. "Dado que Aaron precisava de um transplante de rosto e tomaria medicamentos imunossupressores de qualquer maneira, a relação risco versus recompensa do transplante do olho era muito baixa", recorda Rodriguez. 

Além do olho, a equipe coletou células-tronco adultas derivadas da medula óssea do doador. Essas estruturas podem ajudar a reparar partes disfuncionais do órgão. Foi a primeira vez em que se injetou o material em um nervo óptico humano, na expectativa de melhorar a regeneração nervosa. 

A cirurgia levou 21 horas e envolveu 140 profissionais. James seguiu para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), onde permaneceu por 17 dias. "Temos, agora, a oportunidade de testar vários métodos para melhorar os aspectos restantes da retina, seja por meio de fatores de crescimento, células-tronco ou um dispositivo. Estamos ansiosos por mais avanços", comenta Steven L. Galleta, neuro-oftalmologista da NYU Langone. (PO)

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postado em 10/09/2024 06:00
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