Medicamentos utilizados no tratamento de diabetes tipo 2 têm potencial protetor contra neurodegeneração. A conclusão é de um estudo publicado na revista The BMJ. O trabalho liderado pela Universidade Nacional de Seul, na Coreia do Sul, sugere que os chamados inibidores do cotransportador de sódio-glicose-2 (SGLT-2), podem reduzir o risco de Alzheimer em até 39% quando comparado com os inibidores da dipeptidil peptidase-4 (DPP-4), outro tipo de remédio para diabetes.
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O estudo, que é observacional, analisou dados do Serviço Nacional de Seguro Saúde da Coreia e envolveu 110.885 adultos com diabetes tipo 2, com idades entre 40 e 69 anos. Os participantes, que iniciaram tratamento com inibidores de SGLT-2 ou DPP-4 entre 2013 e 2021, foram acompanhados por uma média de 670 dias. Durante esse período, foram identificados 1.172 casos de demência recém-diagnosticada.
Os resultados mostraram que as taxas de demência foram de 0,22 a cada 100 pessoas por ano para aqueles que usaram inibidores de SGLT-2, em comparação com 0,35 no grupo que utilizou o DPP-4. Além disso, o estudo encontrou uma redução de 39% no risco de doença de Alzheimer e uma diminuição de 52% no risco de demência vascular associada ao SGLT-2.
Os pesquisadores observaram ainda que o efeito dos inibidores de SGLT-2 foi mais pronunciado em tratamentos mais longos. Um risco reduzido de demência de 48% foi observado em pacientes que usaram o medicamento por mais de dois anos, em comparação com uma redução de 43% em tratamentos de dois anos ou menos.
Embora os resultados sejam promissores, os autores destacaram que, por se tratar de um estudo observacional, não é possível estabelecer uma relação direta de causa e efeito. Os cientistas afirmam que mais ensaios são necessários para confirmar essas descobertas e sugerem que é preciso pesquisar mais "para explorar os mecanismos subjacentes de quaisquer efeitos neuroprotetores dos inibidores de SGLT-2".
Lucas Mella, diretor científico da Associação Brasileira de Alzheimer, regional São Paulo, frisa que a presença do diabetes mellitus implica risco 60% maior de desenvolver demência ao longo dos anos em comparação com quem não tem a condição. "Portanto, trata-se de uma população com maior risco para demência. O melhor controle do diabetes e das suas consequências para o cérebro pode ter um impacto significativo na redução do risco de demência."
Conforme Mella, há estudos que sugerem que esses fármacos parecem atuar inibindo a acetilcolinesterase, uma enzima que degrada a acetilcolina — um neurotransmissor importante para as funções cognitivas, sobretudo para a memória. "É importante considerar mecanismos indiretos e não só de ação neurobiológica direta desses fármacos. Melhorando o controle do diabetes e outros parâmetros cardio e cerebrovasculares, há uma ação neuroprotetora, diminuindo lesões e danos cerebrais mediados por esses fatores de risco, como diabetes, pressão alta, colesterol alto, aumento de triglicérides e todo o quadro de síndrome metabólica."
Fábio Henrique de Gobbi Porto, neurologista e professor de neurologia da Universidade São Camilo, em São Paulo, detalha que os inibidores do cotransportador de sódio-glicose 2 (SGLT2) têm sido estudados por seus efeitos benéficos além do controle glicêmico. "Trabalhos observacionais sugerem que esses medicamentos podem ter um papel na redução do risco de demência, embora o mecanismo exato ainda não seja compreendido. Alguns mecanismos propostos incluem a melhoria do controle glicêmico e a redução de fatores de risco cardiovasculares, que podem levar a menos lesões vasculares cerebrais."
Problema global
A Organização Mundial da Saúde estima que o número de pessoas com demência no mundo deve chegar a 78 milhões até 2030. Dado que o diabetes tipo 2 está associado a um risco maior de desenvolver demência, as novas evidências sobre os inibidores de SGLT-2 são particularmente relevantes. Um estudo recente com indivíduos com mais de 65 anos sugeriu um risco reduzido de demência com esses medicamentos em comparação com os inibidores de DPP-4, mas os efeitos em pessoas mais jovens e em tipos específicos de demência ainda são incertos. Considerando o impacto socioeconômico e os desafios de saúde pública associados à demência e ao diabetes tipo 2, os autores recomendaram que as diretrizes clínicas e as políticas de saúde sejam atualizadas regularmente para incorporar as novas descobertas. Com o atual panorama de tratamento limitado, estratégias que possam potencialmente prevenir são importantes.
Saiba Mais
Nova era
"A possibilidade de que essa medicação, já usada para tratar diabetes tipo 2, possa também prevenir a demência é muito importante para a saúde pública. Se confirmada, isso poderia representar uma mudança na prevenção de doenças crônicas, oferecendo uma abordagem mais integrada e eficiente. A pesquisa destaca a importância de considerarmos os efeitos múltiplos dos medicamentos e como diferentes sistemas do corpo estão interconectados. No entanto, é essencial manter uma perspectiva equilibrada, aguardando confirmação por estudos mais rigorosos e não negligenciando outras medidas preventivas importantes. Estamos possivelmente no início de uma nova era no tratamento do diabetes e prevenção da demência, mas o caminho à frente requer mais pesquisas e uma abordagem cuidadosa."
Ana Claudia Pires Carvalho, neurologista do Hospital Anchieta em Brasília
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