Um milímetro cúbico de tecido cerebral pode parecer insignificante pelo tamanho quase microscópico. Porém, esse diminuto pedaço de tecido abriga 57 mil células, 230 milímetros de vasos sanguíneos e 150 milhões de sinapses, totalizando 1.400 terabytes de dados. Ao analisar e mapear essa pequena joia, pesquisadores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e do Google alcançaram uma façanha monumental.
Liderada por Jeff Lichtman, da Universidade de Harvard, juntamente com Jeremy R. Knowles, professor de Biologia Molecular e Celular e recém-nomeado reitor de ciências, uma equipe colaborativa realizou a maior reconstrução 3D com resolução sináptica de um fragmento do cérebro humano até o momento. A reconstrução detalhada revela cada célula e sua intrincada rede de conexões neurais em uma seção do córtex temporal de uma pessoa, com o tamanho aproximado de metade de um grão de arroz.
O resultado desse esforço, publicado na Science, é fruto de uma colaboração de quase uma década entre pesquisadores de Harvard e do Google Research. Essa parceria combina imagens de microscopia eletrônica com algoritmos de IA desenvolvidos pelo Google para codificar e reconstruir a complexa fiação neural dos cérebros dos mamíferos.
A colaboração foi apoiada pela Iniciativa Brain, que, no ano passado, divulgou uma série de 30 estudos de mapeamento cerebral. Agora, o objetivo da nova publicação, além de analisar minuciosamente um pedaço de tecido do cérebro humano, foi criar um mapa de alta resolução da fiação neural de todo o cérebro de um rato. Isso implicaria cerca de mil vezes mais dados do que os produzidos a partir do fragmento de 1 milímetro cúbico do córtex de uma pessoa.
Jeff Lichtman observa que, embora um terabyte possa parecer vasto, um pedaço tão pequeno de cérebro humano ainda contém muito mais do que isso de informação. "A palavra é 'fragmento'. Um terabyte é, para a maioria das pessoas, gigantesco, mas um fragmento de um cérebro humano, apenas um pedacinho minúsculo de cérebro humano, ainda equivale a milhares de terabytes."
O mapa publicado na Science revela detalhes sem precedentes da estrutura cerebral, incluindo um conjunto raro de axônios conectados por até 50 sinapses. A equipe também encontrou peculiaridades no tecido cerebral, como um pequeno número de axônios formando extensas espirais. Dado que a amostra foi retirada de um paciente com epilepsia, ainda não está claro se essas formações são patológicas ou apenas incomuns.
Evolução
Marcel Simis, neurologista do Hospital Israelita Albert Einstein, destaca que um dos pontos altos do trabalho é ter conseguido usar um tecido neuronal, extraído de paciente que passou por cirurgia de epilepsia. "Outra grande evolução foi ter usado esse sistema que engloba inteligência artificial e fazer uma projeção 3D do cérebro e ter esses detalhes todos da estrutura celular."
Para Simis, compreender essa região do cérebro é importante para o tratamento de diversas doenças, entre elas a epilepsia. "Entender melhor o que está alterado no circuito da epilepsia e também gerar insights para outras doenças que têm alteração do lobo temporal, como Alzheimer e depressão, vai ajudar a conhecer melhor a fisiopatologia das condições e respaldar o desenvolvimento de novas terapias."
O campo de estudo de Lichtman, a "conectômica", busca criar catálogos abrangentes da estrutura cerebral, desde células individuais até suas conexões. Tais mapas completos podem proporcionar insights fundamentais sobre a função cerebral e doenças neurológicas, áreas ainda pouco compreendidas pelos cientistas.
Lucas Vasconcellos, neurocirurgião e cirurgião de coluna, em São Paulo, sublinha que a evolução no conhecimento da anatomia permitirá uma definição mais precisa da origem do foco das epilepsias e convulsões, melhorando a precisão no diagnóstico. "E visualizando, no futuro, quem sabe, uma prevenção clínica dessas alterações com medidas medicamentosas ou clínicas."
Vasconcellos ressalta que a cirurgia para epilepsia geralmente é radical, e que se houver maior precisão no diagnóstico e no ponto da origem dessas alterações, "será possível reduzir esses procedimentos, tornando-os cada vez mais minimamente invasivos e mais efetivos". "O conhecimento da anatomia é fundamental no diagnóstico, na prevenção e no tratamento, seja ele clínico, ou cirúrgico."
Os avançados algoritmos de IA desenvolvidos pelo Google permitiram a reconstrução e o mapeamento do tecido cerebral em três dimensões. A equipe desenvolveu um conjunto de ferramentas acessíveis ao público para examinar e anotar o conectoma.
Viren Jain, do Google Research, destaca a importância de disponibilizar os resultados desse projeto para que outros pesquisadores possam se beneficiar deles. O próximo passo da equipe é abordar a formação do hipocampo do camundongo, uma região crucial para a neurociência devido ao seu papel na memória e em doenças neurológicas.
"Dado o enorme investimento colocado nesse projeto, era importante apresentar os resultados de uma forma que qualquer outra pessoa pudesse se beneficiar deles", reforçou, em nota, Viren Jain, colaborador do Google Research.
Vanessa Gil, neurologista e membro da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), cita que aplicar ferramentas de mapeamento de tecido cerebral no estudo do hipocampo de camundongos implica alguns desafios. "A complexidade das redes neurais e a necessidade de considerar a variabilidade individual podem dificultar a interpretação dos dados e a generalização dos resultados. Além disso, questões técnicas, como a resolução espacial e a precisão do mapeamento, podem influenciar a validade e a aplicabilidade dos resultados obtidos."
No entanto, para Gil, superar esses desafios pode levar a uma compreensão mais profunda da função do hipocampo na memória e no desenvolvimento de doenças neurológicas. "O que pode ter implicações importantes para o diagnóstico e tratamento dessas condições."
Sem precedentes
"A reconstrução tridimensional em alta resolução do tecido cerebral oferece uma visão sem precedentes da complexidade das redes neurais humanas. No contexto da epilepsia e outras condições neurológicas, essa técnica pode revelar alterações específicas na conectividade neural que contribuem para a patofisiologia da doença. Isso pode influenciar as abordagens diagnósticas, permitindo identificação mais precisa das áreas cerebrais afetadas. Ao entender melhor a organização e a função dos circuitos neurais em condições patológicas, podem ser desenvolvidas terapias direcionadas, levando potencialmente a intervenções mais eficazes e com menos efeitos colaterais. Isso é particularmente relevante no contexto da variabilidade individual, pois permite a identificação de padrões de conectividade que mudam de um indivíduo para outro. Ao aplicar essas ferramentas de mapeamento no estudo do hipocampo de camundongos, antecipam-se desafios relacionados à tradução dos achados para o cérebro humano. No entanto, o hipocampo é crucial para a memória e está implicado em várias doenças neurológicas, sendo um alvo importante para estudos conectômicos."
Marcelo Lobo, neurologista do Hospital Santa Lúcia, em Brasília