O primeiro registro do câncer como doença é atribuído ao grego Hipócrates (460-370 a.C.), que usou a palavra carcinoma para comparar o tumor a um caranguejo, que adere às superfícies próximas com suas garras. Mas, aparentemente, há mais de 4 mil anos, médicos egípcios já tentavam tratar tumores oncológicos no cérebro, revelou um estudo de caso publicado nesta quarta-feira (29/5) na revista Frontiers in Medicine.
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No artigo, os autores descrevem manipulações por instrumentos em dois crânios mantidos na Coleção Duckworth da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Em ambos, havia lesões compatíveis com a destruição excessiva do tecido, que caracteriza o câncer. Em um deles, que pertenceu a um homem com idade entre 30 anos e 35 anos, e datado entre 2.687 a.C. e 2.345 a.C, o exame microscópico revelou cerca de 30 metástases cranianas.
Para os cientistas que estudaram os restos mortais, a grande surpresa foi que, ao redor das lesões, havia marcas de corte por objeto pontiagudo, como um instrumento metálico. "Quando vimos as marcas no microscópio pela primeira vez, não podíamos acreditar no que estava à nossa frente", disse, em uma apresentação do estudo, Tatiana Tondini, pesquisadora da Universidade de Tübingen, na Alemanha, e primeira autora do estudo.
Procedimento
As perfurações sugerem intervenções cirúrgicas, na tentativa de extrair a doença. "Nos parece que os antigos egípcios realizaram algum tipo de procedimento relacionado à presença das células cancerígenas, provando que, aparentemente, a medicina egípcia antiga fazia experimentos em relação ao câncer", afirmou o coautor Albert Isidro, oncologista do Hospital Universitário Sagrat Cor, na Espanha, especializado em Egiptologia.
Porém, não é possível afirmar que os médicos do Nilo tinham noção de qual doença era aquela. O que se pode dizer, a partir de estudos anteriores, é que tinham um bom conhecimento sobre tumores. Segundo Jaya M. Satagopan, pesquisadora do Instituto de Câncer Rutgers, de Nova Jérsei, nos Estados Unidos, a mais antiga referência escrita a uma lesão do tipo está no Papiro Edwin Smith, o mais antigo tratado cirúrgico sobre traumas.
A coleção de 48 casos é atribuída ao chanceler Imhotep, que, além de conselheiro do reino, era arquiteto e médico. O texto, da era das pirâmides (entre 3 mil e 2,5 mil a.C.), foi traduzido em 1929 e segundo Satagopan, "oferece uma vista fascinante para a prática da medicina e as primeiras evidências de tumores no Egito antigo.
No papiro, há descrições de tumores de mama, com indicações de abordagens oculares e táteis para examiná-los e diagnosticá-los. "Os textos descrevem diversas características visuais dos tumores — inchaço com pus espalhado pela mama, vermelhidão, penetração no osso, inflamação, tumor protuberante e abscesso na mama", relata a especialista do Rutgers, que tem um artigo sobre o tratado médico, publicado no Projeto História do Câncer, da Universidade do Texas.
Imhotep também descreve características táteis — tumores quentes, frios, oleosos, sólidos — e traz receitas de compostos terapêuticos. No estudo divulgado hoje sobre os crânios egípcios, há indicativos de que uma paciente não só foi tratada, como, possivelmente, curada. A mulher de 50 anos, que morreu entre 663a.C. e 343a.C, tinha duas lesões cicatrizadas. Uma foi provocada por arma afiada, a curta distância. Segundo os pesquisadores, embora não se possa dar certeza, isso sugere que ela recebeu alguma intervenção e sobreviveu a ela.
Nova perspectiva
Questionada se o ferimento não pode ter sido causado por uma ação violenta, Tatiana Tondini lembra que lesões do tipo são encontradas em homens, que participavam ativamente de conflitos armados. "Essa mulher estava envolvida em algum tipo de atividade de guerra? Se assim for, devemos repensar o papel das mulheres no passado e como elas participaram ativamente nos conflitos durante a Antiguidade."
Edgard Camarós, paleopatologista da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, ressalta, porém, que o artigo publicado na Frontiers é um estudo de caso e não permite tirar conclusões definitivas, pois o material de estudo foi restrito a um crânio e uma mandíbula (homem) e um crânio (mulher). Mas ele acredita que o estudo traz "uma perspectiva nova e extraordinária em nossa compreensão da história da medicina".
"Esse estudo contribui para uma mudança de perspectiva e estabelece uma base encorajadora para futuras investigações no campo da paleo-oncologia, mas serão necessários mais estudos para desvendar como as sociedades antigas lidavam com o câncer", observa Camarós.
"Maldição dos deuses"
Estudos paleontológicos em fósseis animais demonstram que o câncer já existia na Terra antes mesmo do aparecimento do homem. Além do Papiro Edwin Smith, que ilustra casos da doença de mama, um documento egípcio de 1,5 mil a.C., o Papiro Ebers, descreve tumores de pele, útero, estômago e reto. A doença é classificada, nos textos antigos, como grave e incurável, associada à "maldição dos deuses".
Apenas com Hipócrates (460-370 a.C.) surge uma teoria "científica" sobre o câncer. O grego acreditava que a doença era um excesso de bile negra — naquela época e por muitos séculos, as enfermidades eram atribuídas ao desequilíbrio de quatro humores no corpo: sangue, catarro, bile amarela e bile negra.
Na Idade Média, houve pouco avanço sobre a compreensão da doença e chegou-se a acreditar que era infecciosa (alguns tipos, como os causados por HPV, H. pylori e HBV de fato o são). Na Renascença, quando as autópsias, antes proibidas pela Igreja, começaram a ser realizadas, houve um avanço significativo da medicina, que culminou na prova de que a bile negra não existia.
Muitos cientistas continuaram acreditando na teoria dos humores, e foi apenas no século 18 que o patologista italiano G.B. Morgagni fundou a oncologia científica, ao identificar, em autópsias, lesões nos órgãos que foram associadas ao câncer.
Fonte: Cancer: We Should Not Forget The Past, artigo científico de Anna Di Lonardo, Sergio Nasi, e Simonetta Pulciani
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