CÂNCER

Tecnologia de vacinas contra covid-19 se mostra eficaz para tratar câncer

Com a mesma base das vacinas de mRNA desenvolvidas para a covid-19, substâncias testadas para o tratamento do câncer mostram-se promissoras, inclusive, para tumores desafiadores, como o glioblastoma e o de pâncreas

As drogas existentes não previnem a doença, mas ensinam o sistema imunológico a reconhecer proteínas produzidas pelas células tumorais para serem combatidas -  (crédito: Universidade de Oxford)
As drogas existentes não previnem a doença, mas ensinam o sistema imunológico a reconhecer proteínas produzidas pelas células tumorais para serem combatidas - (crédito: Universidade de Oxford)

Usar o próprio corpo como arma contra o câncer. Essa é a proposta da imunoterapia, uma estratégia aprovada para aplicação em humanos na década de 2010 e que, recentemente, passa pelo que especialistas consideram uma revolução. A tecnologia de mRNA, a mesma das vacinas de covid-19, tem demonstrado eficácia em ensaios clínicos, inclusive, para tumores de difícil tratamento, como os de cérebro e pâncreas. Embora ainda sejam necessários mais estudos antes que um grande grupo de pessoas possa se beneficiar, pesquisadores estão esperançosos com as possibilidades oferecidas pela ferramenta. 

A todo momento, são produzidas células defeituosas, que podem causar tumores, mas o próprio organismo se livra delas, recrutando componentes do sistema imunológico. Porém, as estruturas cancerosas podem escapar da estratégia, levando ao desenvolvimento da doença. A ideia da imunoterapia é potencializar a resposta natural, amplificando em centenas de vezes a ação de estruturas como os linfócitos T, grupo de "soldados" que induzem a autodestruição celular. 

Atualmente, isso pode ser feito de diversas formas: anticorpos monoclonais, inibidores de checkpoint, citocinas e, mais recentemente, terapia por células Car-T e vacinas de mRNA. Todas têm suas vantagens e desvantagens, mas a última, além de desencadear uma resposta robusta, é extremamente segura. Diferentemente de tratamentos baseados em DNA, por exemplo, não há risco de causar mutações genéticas. 

Personalização

Uma característica da vacina de mRNA é a personalização, pois é desenvolvida com células do tumor do próprio paciente. "Nenhum câncer é igual ao outro. Aliás, se a gente procura dentro do próprio câncer de uma pessoa, vai ver que diferentes grupos de células, como se fosse uma árvore, em que os ramos se separam do tronco principal", compara Bernardo Garicochea, oncologista e hematologista da Oncoclínicas. Portanto, em um mesmo tumor, há uma diversidade de células doentes. 

"Para reduzir esse problema, tentamos identificar a proteína estranha no tumor. Às vezes isso não é muito difícil, porque a proteína é muito expressa pelo tumor, então a gente consegue produzir um tratamento direto contra ela", continua Garicochea. Porém, há casos em que a proteína é difícil de se detectar, seja por ser pouco numerosa, seja pela estrutura diferenciada. 

A estratégia das vacinas de mRNA consiste em identificar, em laboratório, as proteínas do tumor e dotar o RNA mensageiro de ferramentas para que, dentro das células, ele dê instruções para a sua produção. Assim, o sistema imunológico é capaz de reconhecê-las e combatê-las de forma apropriada. 

Desde a descoberta do RNA, da década de 1960, os cientistas sabiam que havia um grande potencial terapêutico nessas moléculas, mas barreiras tecnológicas impediam sua exploração clínica. A principal era fazer com que o mRNA fosse absorvido pelo corpo e rapidamente degradado antes de entregar sua mensagem e ser lido pelas células. 

Com a nanotecnologia, foram desenvolvidas gotículas de gordura que envolviam a molécula como uma bolha, facilitando a entrada no núcleo celular. As primeiras vacinas com a tecnologia foram criadas na década de 1990, contra o vírus Ebola. Contudo, a falta de apelo comercial — o microrganismo circula em um número reduzido de países —, as companhias farmacêuticas não investiram nessas ferramentas. 

Até que, no fim de 2019, um coronavírus então desconhecido colocou a comunidade científica em peso na busca por um imunizante que ensinasse ao organismo reconhecer a spike, a proteína que permite ao Sars-CoV2 entrar nas células. A plataforma estava pronta, e uma das vantagens das vacinas de mRNA é que são extremamente adaptáveis. No caso da covid, foram usadas para reduzir o risco de infecção. Para o câncer, a tecnologia não é preventiva, mas faz parte do arsenal de tratamento, uma vez que a doença já se instalou.  

Glioblastoma

Um exemplo de pesquisa clínica com vacina de mRNA é a desenvolvida por pesquisadores da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, para combater o gliobastoma, o mais agressivo e letal câncer de cérebro. Antes de testes com humanos, a tecnologia foi aplicada em 10 cães que haviam sido diagnosticados com a doença e não tinham outra opção de tratamento. Os animais que receberam a terapia viveram, em média, 139, comparado a uma expectativa de sobrevivência entre 30 e 60 dias. 

O resultado abriu caminho para um pequeno ensaio de fase um com quatro adultos. Em um artigo publicado na revista Cell, os cientistas relataram que a vacina personalizada, criada com células retiradas dos próprios pacientes, resultou em uma resposta extremamente rápida: em menos de 48 horas, as poucas células inertes que pareciam não notar a proteína estranha passaram a atacá-la ferozmente. 

O próximo passo será um teste com pacientes pediátricos. Os pesquisadores lembram que ainda há muitos desafios pela frente, mas estão entusiasmados com a perspectiva de um tratamento mais eficaz para o glioblastoma. "Estou esperançoso que a vacina seja um novo paradigma de como tratamos os pacientes, uma nova plataforma para modularmos o sistema imunológico", afirma Elias Sayour, principal autor do estudo.

Caminho certo na doença pancreática 

Um dos cânceres mais desafiadores para a medicina é o de pâncreas, doença de alta letalidade. "Os principais fatores relacionados ao insucesso do tratamento estão ligados ao diagnóstico tardio da doença, em que geralmente se apresenta metastática", explica Tânia Moredo, oncologista do Hospital Igesp, do grupo Trasmontano Saúde, em São Paulo. "Não bastasse isso, a doença tem uma enorme complexidade molecular com vários fatores responsáveis por sua progressão e resistência ao tratamento sistêmico."

Segundo a médica, como a maioria dos pacientes já se encontra em estágio avançado, apenas 12% sobrevivem além de cinco anos. Uma abordagem experimental para a doença está sendo desenvolvida por cientistas do Memorial Sloan Kettering Cancer Center (MSK), nos Estados Unidos. Trata-se uma vacina baseada em mRNA que, em um ensaio clínico de fase 1, ativou células do sistema imunológico que persistiram no corpo até três anos após o tratamento em alguns pacientes. 

Além disso, uma resposta imunológica induzida pela vacina foi associada à redução do risco de recidiva do câncer. "Os dados mais recentes do ensaio de fase 1 mostram que estamos no caminho certo", comemora Vinod Balachandran, cirurgião e pesquisador de câncer de pâncreas do Memorial Sloan Kettering Cancer Center (MSK). Novos resultados de ensaios clínicos para candidata à vacina mRNA contra o câncer de pâncreas. A pesquisa foi feita com 16 pessoas que receberam o tratamento juntamente com um imunoterápico e um quimioterápico. 

Resultado

Em três anos, nos oito pacientes que responderam, as vacinas induziram células T específicas para o tumor de cada um deles. Ao estudar o tecido e o sangue dos voluntários antes e depois da terapia, a equipe descobriu que 98% desses componentes do sistema imunológico não estavam presentes na fase anterior à imunização. 

Agora, o grupo conduz um ensaio de fase 2, com 260 pacientes, para avaliar a eficácia e a segurança. "Com os dados positivos do nosso ensaio de fase 1, estamos entusiasmados", diz Balachandran. A oncologista Tânia Moredo diz que há várias outras substâncias semelhantes sendo testadas, mas lembra que as pesquisas ainda são iniciais. 

"Apesar do progresso, o desenvolvimento de vacinas eficazes para o câncer de pâncreas enfrenta desafios significativos, incluindo a heterogeneidade dos tumores, a capacidade do câncer de evadir o sistema imunológico e a necessidade de identificar antígenos tumorais específicos e eficazes", diz Moredo. "No entanto, as abordagens inovadoras e a integração de novas tecnologias continuam a oferecer esperança de melhores tratamentos no futuro." (PO)

Palavra de especialista

A ideia de uma vacina terapêutica contra o câncer é basicamente levar antígenos tumorais — que são algumas proteínas típicas do tumor que não estão presentes nas células saudáveis — ao sistema imune, para que essas proteínas sejam reconhecidas e haja uma ativação imunológica e, consequentemente, um efeito terapêutico sobre o tumor. Há pelo menos 10 anos, já se usa a imunoterapia contra o câncer, mas ela não é igual à vacina de mRNA. A imunoterapia tradicional age destravando aquilo que chamamos de 'checkpoints imunes', que são pontos de travas do sistema imunológico que ficam reforçados pelo tumor. A imunoterapia tradicional libera tais travas para que as células possam agir contra o tumor. Já a vacina de mRNA apresenta diretamente ao sistema imunológico os antígenos tumorais e, portanto, o ativa especificamente e contra uma característica de um dado tumor. As vacinas de mRNA são personalizadas para cada tipo de tumor; assim, existem diversas sendo pesquisadas em desenvolvimento, que utilizam antígenos tumorais diferentes. A chegada da vacina terapêutica na prática clínica é, sem dúvida nenhuma, uma arma bem-vinda, mas é mais uma arma no arsenal completo do tratamento dos pacientes com câncer, que inclui estratégia cirúrgica, radioterapia, quimioterapia e imunoterapia. 

Abraão Dornellas, oncologista do Hospital Israelita Albert Einstein e integrante do Comitê Científico do Instituto Vencer o Câncer

 

 

 

 

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postado em 19/05/2024 05:01 / atualizado em 21/05/2024 14:09
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