Para até 20% das mulheres, a gestação e o pós-parto vêm acompanhados por algum transtorno mental, diz a Organização Mundial da Saúde (OMS). Agora, um estudo publicado no British Medical Journal (BMJ) sugere que uma única dose de um medicamento anestésico, que vem sendo utilizado para tratar depressão que não responde aos medicamentos tradicionais, reduz o risco do problema no puerpério.
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A cetamina, também conhecida como ketamina, é um anestésico hospitalar usado há mais de meio século, inclusive no Brasil. Geralmente, a aplicação intravenosa é indicada para sedação dos pacientes em pequenos procedimentos, como curetagem, instalação de dreno no tórax e dissolvição de pedras nos rins. Contudo, estudos têm demonstrado que a droga também pode ser eficaz para depressão refratária — quando já se tentou ao menos três tratamentos convencionais, sem resposta.
Segundo o anestesista Tiago Gil, diretor-técnico do Centro de Cetamina de São Paulo, ao entrar no cérebro, a substância promove uma melhor conexão entre os neurônios, e áreas afetadas do órgão voltam a funcionar — clinicamente, isso se traduz na sensação de melhora dos sintomas da depressão. Outros distúrbios que têm sido tratados com a droga são ideação suicida, automutilação, transtorno obsessivo compulsivo e estresse pós-traumático.
No Brasil, a forma inalatória é reconhecida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para tratamento da depressão. Pacientes de transtornos mentais também podem receber o medicamento intravenoso, com indicação do psiquiatra e aplicação pelo anestesista, quando informados sobre os riscos e benefícios.
Infusão
No estudo publicado no BMJ, pesquisadores de instituições da China e dos Estados Unidos tinham intenção de descobrir se uma única aplicação de baixa dose de cetamina pós-parto poderia reduzir a depressão subsequente. Para isso, recrutaram 361 mães atendidas em cinco hospitais chineses que não tinham histórico do transtorno, mas, em testes durante a gestação, demonstraram risco de desenvolver o problema.
As mulheres foram divididas aleatoriamente entre grupo terapêutico e placebo. No primeiro caso, as gestantes receberam a cetamina por infusão intravenosa durante 40 minutos, logo após o parto. Os pesquisadores entraram em contato com elas de 18 a 30 horas subsequentes e, novamente, aos sete e 42 dias.
Para diagnosticar a depressão, os cientistas usaram um questionário validado, chamado Entrevista Neuropsiquiátrica Internacional. Também avaliaram o quadro com outros dois escores: de Edimburgo e a Escala de Avaliação de Depressão de Hamilton. Nenhuma participante tomou antidepressivos ou recebeu psicoterapia durante o período de acompanhamento.
Redução
Aos 42 dias após o parto, 12 de 180 (6,7%) das mães que receberam cetamina tiveram um episódio depressivo, em comparação com 46 de 181 (25,4%) daquelas que receberam placebo. A redução de risco relativo foi cerca de 75%. Além disso, como os pesquisadores previam, as mulheres tratadas com a substância após o parto apresentaram pontuações baixas nas escalas de avaliação diagnóstica.
Combinando os três resultados, os pesquisadores observam que a cetamina evitou um caso de depressão grave em cada cinco partos. Os efeitos colaterais foram mais sentidos no grupo da substância, incluindo tontura e visão dupla. Porém, esses sintomas, segundo os autores, duraram menos de um dia e não precisaram de tratamento.
Os pesquisadores reconhecem algumas limitações, como a exclusão de mães com perturbações de humor pré-gravidez e o curto período de acompanhamento, que pode ter levado à subnotificação de sintomas neuropsiquiátricos e outros eventos adversos. Além disso, a maioria das mulheres teve apenas sinais depressivos pré-natais leves, então não está claro se a cetamina é igualmente eficaz naqueles com quadros mais graves.
Cientistas afirmam que, para gestantes com sintomas depressivos pré-natais, uma dose única e baixa da substância pode reduzir o risco de episódios depois do parto. "Estes resultados são geralmente consistentes com trabalhos anteriores que investigaram os efeitos de baixas doses de cetamina na depressão pós-parto, principalmente em mães após parto cesáreo", escreveu, em nota, Dong-Xin Wang, professor do Departamento de Anestesiologia do Hospital de Pequim, na China.
Além disso, Wang ressalta que o estudo "amplia a compreensão existente, visando mulheres com depressão pré-natal pré-existente que estavam em alto risco de depressão pós-parto." A conclusão do artigo é que a cetamina em baixas doses deve ser consideradas para mulheres com risco de desenvolver o transtorno mental.
"Esse é um estudo poderoso que mostra evidências convincentes do uso de cetamina na prevenção da depressão pós-parto em mães com alguns sintomas de depressão antes do nascimento", avalia Camilla Nord, professora de neurociência cognitiva da Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
A cientista destaca, porém, que o fato de o estudo excluir mulheres com transtorno de humor pré-gravidez impede a compreensão sobre a eficácia neste grupo. "Porém, no geral, o estudo fornece uma forte indicação de que a cetamina tem potencial de tratamento para prevenir a depressão pós-parto em mães com depressão pré-natal leve."
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