Século 15

Bactéria da sífilis já existia no Brasil antes da chegada dos portugueses

Um estudo conjunto entre cientistas brasileiros e suíços concluiu que a Treponema pallidum, que causa a infecção sexualmente transmissível, tinha uma variante não venérea antes da chegada dos portugueses

Ossos de mortos há mais de 2 mil anos foram analisados pelos pesquisadores para o estudo -  (crédito: Dr José Filippini)
Ossos de mortos há mais de 2 mil anos foram analisados pelos pesquisadores para o estudo - (crédito: Dr José Filippini)

Em uma colaboração internacional entre as universidades de Zurique e da Basileia, na Suíça, e a Universidade de São Paulo (USP), cientistas analisaram material genético da bactéria Treponema pallidum, da família que causa a sífilis, nos ossos de pessoas que morreram no Brasil há 2 mil anos, e constataram que havia uma variante não venérea da doença. É o achado mais antigo sobre o tema até o momento. Para os pesquisadores, o ensaio prova que os humanos sofriam de doenças semelhantes à sífilis, conhecidas como treponematose, antes da chegada de Cristóvão Colombo à América no século 15. O estudo foi publicado ontem na revista Nature.

Sabine Eggers, especialista em biologia humana, ex-professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Departamento de Antropologia do Museu de História Natural de Viena, na Áustria, narra que a escavação dos materiais começou nos anos 1990, feita pela USP. "O Sambaqui Jabuticabeira 2, em Santa Catarina, é constituído por muitos e muitos, centenas, se não milhares de sepultamentos, feitos por populações de pescadores, caçadores, coletores sedentários. Todos os esqueletos iam para o meu laboratório."

A pesquisa teve continuidade graças a estudantes e ao empenho de Sabine. "Um deles, o médico José Filippini, que é coautor desse trabalho, teve como tema analisar os ossos dos sepultamentos de mais de 40 sambaquis brasileiros à procura de patologias. Dentre as infecções, ele encontrou várias que se tratavam de treponimatose, relacionadas à sífilis. Foi a partir daí que começamos a pensar, o que será que de fato aconteceu? Será que a gente consegue fazer um diagnóstico diferencial realmente bom?"

O estudo avançou a partir do contato de Eggers com cientistas internacionais, que participaram da pesquisa e da publicação do artigo. Para o trabalho, o grupo examinou ossos de quatro indivíduos que morreram há dois mil anos, na região costeira de Santa Catarina, no Brasil. Em alguns deles, foram detectadas alterações patológicas visíveis nos ossos, o que poderia indicar que o falecido sofria de uma doença semelhante à sífilis.

DNA antigo

A equipe usou utensílios de dentistas para conseguir pequenas amostras de osso e, assim isolaram o material genético pré-histórico pertencente ao patógeno da sífilis. O estudo demonstra que todos os genomas bacterianos investigados podem ser atribuídos à cepa Treponema pallidum endemicum, o patógeno que leva ao bejel — também conhecido como beijo ou sífilis endêmica, doença infecciosa.

É uma das treponematoses, grupo de doenças infecciosas que inclui a sífilis. Embora a sífilis, infecção  sexualmente transmissível (IST), represente um risco global para a saúde, o bejel se espalha por contato com a pele e ocorre em poucas regiões, muito quentes, áridas e secas.

Pré-Colombo

Ainda há grandes debates entre especialistas e historiadores médicos sobre se a tripulação de Colombo trouxe a sífilis sexualmente transmissível da Europa para as Américas. A doença se disseminou rapidamente a partir do final do século 15, especialmente em cidades portuárias. "O fato de as descobertas representarem um tipo endêmico de doenças treponêmicas, e não a sífilis sexualmente transmissível, deixa a origem da sífilis sexualmente transmissível ainda incerta", diz, em nota, Kerttu Majander, pesquisador de pós-doutorado na Universidade de Basileia e um dos principais autores do estudo.

Para os cientistas, por não terem localizado evidência de sífilis sexualmente transmissível nas amostras parece improvável que os colonizadores tenham levado a doença da América para a Europa. Descobertas anteriores, por exemplo, na Finlândia e Polônia, sugerem que algumas formas de treponematoses existiam também na Europa.

Recombinação

Muitas espécies de bactérias trocam características que são benéficas evolutivamente por meio da recombinação. Uma comparação entre o DNA pré-histórico dos ossos do Brasil e os patógenos atuais mostra que isso realmente ocorreu. A análise do material genético permitiu deduzir a data de origem da família Treponema pallidum. Estima-se que os patógenos surgiram em algum momento entre 12 mil e 550 antes de Cristo, muito mais tempo que se supunha.

Fabio Bombarda, infectologista, especialista em doenças infecciosas e medicina intensiva, da Santa Casa de Araçatuba, São Paulo, considera que o estudo reafirma a grande capacidade das bactérias do grupo treponemas de se ajustarem às adversidades. "Vão se adaptando, ocupando diversas regiões geográficas, além das distribuições conhecidas previamente, como na Europa."

Leonardo Vasconcellos, médico patologista Clínico e Diretor de Ensino da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML), frisa que o artigo ressalta a importância de compreender a presença ancestral do treponema ao longo de mais de dois mil anos. "Isso destaca a constância de certas doenças ao longo da evolução humana. Apesar de limitações históricas no diagnóstico e tratamento, a sífilis é um desafio de saúde pública. Felizmente, o tratamento é simples, utilizando o medicamento em doses adequadas. A bactéria não desenvolveu resistência ao longo do tempo. Sua persistência está relacionada à falta de conscientização da população", ressalta.

Importância histórica

"O trabalho é muito importante porque demonstra o poder da paleontologia molecular, um campo de estudo interdisciplinar que visa aplicar técnicas moleculares ao material fóssil, a fim de recuperar, analisar e caracterizar moléculas como o DNA. Foi possível obter DNA com boa qualidade, o que permitiu confiar nos resultados encontrados. É bom frisar que o genoma detectado não é da subespécie causadora de sífilis, mas sim de beje. Portanto, permanece a dúvida sobre a origem da sífilis sexualmente transmitida, mas abre o caminho para que a história da própria sífilis seja melhor esclarecida. Fica caracterizada a capacidade dos Treponemas de se adaptarem a vários climas e regiões. Compreender melhor a genética e a evolução dos patógenos é fundamental."

Salmo Raskin, geneticista e diretor do Laboratório Genetika, em Curitiba, no Paraná

Importância histórica

"O trabalho é muito importante porque demonstra o poder da paleontologia molecular, um campo de estudo interdisciplinar que visa aplicar técnicas moleculares ao material fóssil, a fim de recuperar, analisar e caracterizar moléculas como o DNA. Foi possível obter DNA com boa qualidade, o que permitiu confiar nos resultados encontrados. É bom frisar que o genoma detectado não é da subespécie causadora de sífilis, mas sim de beje. Portanto, permanece a dúvida sobre a origem da sífilis sexualmente transmitida, mas abre o caminho para que a história da própria sífilis seja melhor esclarecida. Fica caracterizada a capacidade dos Treponemas de se adaptarem a vários climas e regiões. Compreender melhor a genética e a evolução dos patógenos é fundamental."

Salmo Raskin, geneticista e diretor do Laboratório Genetika, em Curitiba, no Paraná

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

postado em 25/01/2024 06:00
x