Dois mil e vinte e três entrou para a história como o ano mais quente de que se tem notícia. Registros paleoclimáticos — vestígios naturais que ajudam a desvendar o clima do passado — apontam que, em 120 mil anos, o planeta nunca esteve tão quente, segundo o Serviço Meteorológico Europeu. Todos os recordes foram quebrados, desde que a temperatura começou a ser monitorada, no século 19. Na definição do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, a Terra entrou na "era da ebulição global".
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Uma era de extremos, como mostra série do Correio. Com calor recorde, mas também tempestades letais, como a que matou, em dezembro, 14 pessoas na Argentina e duas no Uruguai. "Acho que o mais importante a destacar aqui é que não se trata apenas de estatísticas. O fato de termos visto neste ano recordes de calor significa um sofrimento humano recorde", ressalta Friederike Otto, professor sênior em ciências climáticas no Imperial College London, na Inglaterra. "As ondas de calor extremas e as secas causaram milhares de mortes, pessoas perderam os seus meios de subsistência, foram deslocadas, etc. Esses são os registros que importam."
O El Niño contribuiu para elevar as temperaturas, mas os efeitos do fenômeno foram exacerbados pela tendência de aquecimento global provocada por intervenções humanas. "Esse fenômeno natural ocorre num quadro de aumento da temperatura global devido ao acréscimo da concentração de gases com efeito de estufa com origem na atividade humana", explica o climatologista Álvaro Silva, da Organização Meteorológica Mundial (OMM). Para os próximos quatro meses, não se deve esperar alívio: de acordo com Silva, há 90% de risco de o evento climático acabar apenas em abril.
Conferência
Com a Terra pegando fogo, esperava-se que a Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) de 2023 avançasse para se fazer cumprir o Acordo de Paris. O pacto, costurado na capital francesa em 2015, tenta impedir que o planeta chegue ao fim do século 1,5ºC mais quente que no período pré-industrial. Porém, o monitoramento das medidas nacionais e globais para evitar um colapso no clima indica que muito pouco foi feito.
Na COP28, realizada em Dubai, havia a expectativa de se salvar o acordo. Porém, duas semanas de negociações, encerradas em dezembro, não resultaram nas medidas drásticas necessárias, segundo cientistas, para garantir a segurança climática. Embora, pela primeira vez na história da conferência, a declaração final tenha assumido que a queima de combustíveis fósseis está associada ao aquecimento global, especialistas consideraram o texto insuficiente.
"À medida que o novo acordo fixa níveis elevados de emissões nos próximos anos, a temperatura continuará a subir", resume Kevin Anderson, professor de energia e mudanças climáticas na Universidade de Manchester, Inglaterra. Ele lembra que as emissões continuam altíssimas e, se nada frear a tendência, em, no máximo, oito anos o orçamento de carbono acabará. Ou seja, por volta de 2030, a Terra já estará 1,5ºC mais quente que no século 19, antecipando em sete décadas o que se previa no Acordo de Paris.
Chance
Kevin Anderson considera "fraudulenta" a linguagem usada na declaração da COP28 sobre o zero líquido. Segundo o texto, em 2050 será preciso retirar tantos gases de efeito estufa da atmosfera quanto os emitidos. Para ele, trata-se de uma missão impossível. "Mesmo que começássemos seriamente a reduzir as emissões a partir do início de 2024, e não existisse tal exigência no novo texto, então ainda precisaríamos de utilização zero de combustíveis fósseis, globalmente, por volta de 2040."
Para Maria José Sanz, diretora do Centro Basco BC3 para Mudanças Climáticas, que participou da COP28, existe chance de o acordo ser cumprido, mas, para tanto, o nível de ambição e comprometimento tem de aumentar. "A declaração cita a ciência e menciona pela primeira vez os combustíveis fósseis", reconhece. "Mas este é o início de um caminho que devemos percorrer de forma acelerada, urgentemente."
Palavra de especialista // Piora progressiva
“2023 foi o ano em que os recordes climáticos não foram apenas quebrados, mas destruídos. A compilação de dados do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo mostra que o verão de 2023 foi o mais quente já registado e ficou 0,66°C acima da média. Com ondas de calor recorde na Europa, América e China, temperatura recorde dos oceanos e derretimento extremo do gelo marinho da Antártida, estamos agora sentindo todos os impactos das alterações climáticas. Os fenômenos meteorológicos extremos são agora comuns e pioram todos os anos — isto é um alerta aos líderes internacionais de que devemos reduzir rapidamente as emissões de carbono agora.”
Mark Maslin, professor de climatologia da Universidade College London
Oceanos prejudicados por aquecimento
As temperaturas recordes de 2023 não foram sentidas somente na atmosfera e na terra. Um relatório de 80 cientistas coordenando pelo serviço climático europeu Copernicus revelou, em novembro, que a superfície do mar nunca esteve tão quente, ultrapassando 23ºC, o que quebra o recorde anterior, de 2016. As consequências para a biodiversidade e o equilíbrio planetário são dramáticas, mostram estudos.
Águas superficiais mais quentes significam derretimento de gelo nos polos, contribuindo para o aumento do nível do mar. Também podem causar o colapso dos sistemas de correntes oceânicas, com fortes impactos no clima. "Em 2023, os oceanos registraram as temperaturas mais altas, e o nível do mar está subindo porque o calor faz com que a água se expanda e o gelo derreta", alerta Matthew England, oceanógrafo da Universidade de Southwern Wales, na Austrália. "Os ecossistemas também sofrem um estresse térmico sem precedentes, e a frequência e a intensidade dos fenômenos meteorológicos extremos mudam rapidamente, com custos são enormes."
England é autor de um estudo publicado recentemente na revista Nature Communications que mostra que, desde a década de 1990, o aquecimento do oceano está acelerado, quase duplicando entre 2010-2020 em relação a 1990-2000. "O derretimento das calotas polares, as condições climáticas extremas e os ecossistemas marinhos, incluindo os recifes de coral, são altamente sensíveis às mudanças de temperatura dos oceanos", diz Sjoerd Groeskamp, coautor do estudo e pesquisador do Instuto Real de Pesquisa Marinha da Holanda. "É fundamental compreendermos exatamente como e onde o oceano aquece – tanto agora como no futuro."
Antártida
Os oceanos absorvem mais de 90% do excesso de calor gerado pelo homem e acumulado no sistema climático da Terra. O aumento nas temperaturas superficiais foi generalizado, mas o Oceano Antártico registrou o maior armazenamento calorífico nas duas últimas décadas, retendo quase o mesmo excesso que o Atlântico e o Pacífico, combinados.
Os autores apelam para mais ações dos países que mais emitem, com objetivo de cumprirem as suas metas líquidas de carbono zero o mais rápido possível, limitando os danos causados pelo aquecimento descontrolado dos oceanos. "Sem ação, essas promessas de zero emissões líquidas não têm sentido", alerta Groeskamp.
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