Estudo

O futuro hoje: cientistas desenvolvem sensor que traduz pensamentos em fala

Tecnologia da Universidade de Duke devolve a voz a pessoas que perderam a habilidade de articulação vocal. Os dispositivos decodificam impulsos elétricos e possibilitam a comunicação com a ajuda de um computador

Uma possibilidade de comunicação verbal para pessoas que perderam a capacidade de fala. É o que promete um estudo de pesquisadores da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, publicado recentemente na revista Nature. Por meio de implantes cerebrais, o equipamento seria capaz de decodificar o pensamento e prever as palavras que o usuário deseja dizer. 

Uma parte dos pacientes com comprometimento verbal ainda mantém em funcionamento a região do cérebro que transforma os pensamentos em impulsos elétricos e age para possibilitar a expressão vocal. "Contanto que estas pessoas tenham sido capazes de falar em algum ponto de suas vidas, é provável que muitas tenham preservado essa área", explicou Jonathan Viventi, neurocientista e um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo.

O neurocirurgião funcional do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (FMUSP) Antônio Jorge Oliveira diz que o novo equipamento será benéfico para pessoas que não articulam mais a fala, em decorrência de problemas neurológicos, como um acidente vascular cerebral (AVC), por exemplo, mas seguem com boa resposta cognitiva. "Seriam pessoas que conseguem receber e raciocinar informações. Poderíamos pegar esse sinal cerebral, transformar em palavras e um computador emitiria o som", detalha.

Os cientistas de Duke realizaram testes para entender como cada fonema, palavra e sílaba são traduzidos em impulsos no cérebro. Segundo Viventi, os experimentos contaram com pacientes voluntários, que ainda têm capacidade de fala e já passariam em cirurgias cerebrais por outros motivos — tratamento de mal de Parkinson ou retirada de tumores, por exemplo. A equipe conectou sensores no órgão e pediu que os participantes falassem, em voz alta, algumas palavras aleatórias.

Precisão

Observando a dinâmica cerebral dos pacientes, os dados gravados abasteceram e treinaram o algoritmo de uma máquina. Ela aprendeu o padrão cerebral de cada um deles com cerca de 80% dos dados coletados e passou a prever os fonemas dos outros 20%. A taxa média de precisão do equipamento foi de 40%, número comemorado pelos pesquisadores, apesar de parecer baixo. Isso porque o resultado foi alcançado com apenas 90 segundos de material captado nos testes.

Um dos pontos de sucesso do estudo é a quantidade de sensores cerebrais que a equipe conseguiu implantar nos pacientes testados. Foram 256 dispositivos microscópicos, separados por 1mm de distância: um avanço importante para a precisão das informações. "Geralmente, eram usados 64 eletrodos, e espaçados por quase 1cm uns dos outros", explicou Gregory Cogan, neurocientista e também responsável pelo estudo, confirmando que essa área de pesquisa está muito avançada. "Estamos desenvolvendo tecnologia que consegue ler sinais cerebrais em uma resolução muito maior do que no passado", avaliou.

Os dois pesquisadores dão um prazo de cinco a 10 anos para que a tecnologia esteja ao alcance do público, possivelmente em um nível de eficiência maior. "Nosso trabalho e o de outros grupos mostram que dá para ser feito. Basta juntar as peças, trabalhar em acordos comerciais, para viabilizar a produção, e conquistar a aprovação das agências regulatórias", observou Viventi.

Cogan antecipou ao Correio que um novo estudo já está em preparação. Desta vez, o intuito é usar 1 mil sensores cerebrais em um dispositivo sem fio, para possibilitar testes mais completos. Se aprovado, a expectativa é de que o trabalho seja divulgado em cerca de dois anos. Viventi acredita que os grandes desafios para decodificar por completo os impulsos cerebrais que dão origem à fala são tecnologia disponível e tempo. "Se conseguirmos colocar ainda mais eletrodos, mais próximos uns dos outros, e coletar dados por horas em vez de apenas 10 ou 15 minutos, podemos atingir mais de 90% de precisão", analisou. "Estamos muito perto."

 


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Três perguntas para Antônio Jorge Oliveira, neurocirurgião funcional do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.

Qual a perspectiva de avanço dos estudos da área no Brasil e no mundo?

Esse é um tema conhecido mundialmente como "interface cérebro-máquina". É o estudo de diferentes tecnologias para tentar decodificar e dar uma aplicação prática. Por exemplo, devolver alguma função que foi prejudicada ou perdida por algum motivo pelo paciente. Apesar de ser um interesse antigo, a área tem tido uma repercussão mais forte nos últimos cinco anos, principalmente, com uma explosão de artigos no mundo todo. No Brasil, o volume de publicações é bem menor que no resto do mundo, mas há publicações importantes também.

Todos os pacientes que perderam a fala estão elegíveis para usar essa nova tecnologia?

Não. A fala é dividida em três etapas no cérebro: interpretação da informação, condução e articulação da palavra. A inovação poderia ser aplicada para o grupo de pacientes que conseguem compreender a informação externa e elaborar uma resposta, tendo apenas a articulação da fala comprometida. Quem sabe, no futuro, seja possível fazer isso de uma forma mais abrangente.

Por que a quantidade de sensores e a distribuição deles é tão importante para o sucesso de estudos cerebrais como este?

Com os nossos bilhões de neurônios, a leitura elétrica dessas informações é muito cheia de ruído, ou seja, tem informação demais, sinal demais e é difícil separar o que é cada coisa. Entender qual é o padrão elétrico que gera a fala, por exemplo. Então, quanto mais eu conseguir subdividir essa informação, mais capacidade eu tenho de entender o que é cada estímulo. Por isso esse estudo tem relevância: porque é um eletrodo novo que consegue captar mais informações, e de forma destrinchada.

Interface cérebro-computador

Uma interface cérebro-computador é um sistema que adquire sinais cerebrais, analisa-os e os traduz em comandos retransmitidos a um dispositivo de saída para realizar uma ação desejada. Em princípio, qualquer tipo de sinal cerebral poderia ser usado para controlar um sistema do tipo, mas os mais comumente estudados são aqueles da atividade cerebral medidos por eletrodos no couro cabeludo, na superfície cortical ou no córtex.

Essa tecnologia pode, eventualmente, ser usada para substituir ou restaurar funções úteis para pessoas gravemente incapacitadas por distúrbios neuromusculares. Também têm potencial na reabilitação de pacientes que sofreram acidentes vasculares cerebrais, traumatismos cranianos e outros distúrbios.

Fonte: Brain-Computer Interfaces in Medicine, de Jerry J. Shiha et al.