Neurociência

Consórcio Brain: cientistas apresentam o cérebro como nunca visto

Mapeamento ao nível celular caracteriza o órgão em um detalhamento sem precedente. Informações estão sendo usadas para estudar doenças e condições do neurodesenvolvimento, como câncer e esquizofrenia

Com detalhes sem precedentes, 30 artigos publicados nesta quinta-feira (12/10) na revista Science mapeiam o cérebro humano no nível celular, na expectativa de encontrar a resposta para doenças com origem no sistema nervoso central. Ao caracterizar 3 mil tipos de células do órgão, os cientistas esperam, também, revelar as características biológicas que diferenciam o homem de seus parentes mais próximos na natureza, definindo melhor a espécie. O trabalho é resultado de um projeto lançado em 2017, o Consórcio Brain, dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos.

"Este é realmente o início de uma nova era na ciência do cérebro, onde seremos capazes de compreender melhor como os cérebros se desenvolvem, envelhecem e são afetados pelas doenças", comenta Joseph Ecker, pesquisador do Instituto Médico Howard Hughes do Instituto Salk, nos Estados Unidos, e autor de um dos trabalhos. No estudo, a equipe da qual Ecker participa analisou padrões de metilação do DNA (uma alteração química no material genético) de mais de 500 mil células cerebrais de 46 regiões do órgão. Em nota, Jingtian Zhou, coautor do artigo, disse que "esta é a primeira vez que observamos essas estruturas dinâmicas do genoma em um nível totalmente novo".

"Criamos os atlas celulares mais detalhados do cérebro humano adulto e do desenvolvimento do órgão nos primeiros meses da gravidez", conta Sten Linnarsson, professor de biologia de sistemas moleculares no Departamento de Bioquímica Médica e Biofísica do Instituto Karolinska, na Suécia. "Poderíamos dizer que fizemos uma espécie de censo das células cerebrais." Linnarsson participou de uma das principais pesquisas que possibilitaram o mapeamento inédito, em parceria com colegas dos Estados Unidos.

Os pesquisadores analisaram mais de três milhões de núcleos celulares individuais usando a técnica de sequenciamento de RNA, que revela a identidade genética de cada célula. Ao todo, foram estudadas mais de 100 regiões cerebrais, com caracterização de 3 mil estruturas, 80% das quais eram neurônios e, as restantes, diferentes tipos de glias. "Muitas pesquisas se concentraram no córtex cerebral, mas encontramos a maior diversidade de neurônios no tronco cerebral", conta Linnarsson. "Pensamos que algumas dessas células controlam comportamentos inatos, como reflexos de dor, medo, agressão e sexualidade."

Organização

Também foi possível identificar que a identidade da célula associa-se ao local do cérebro onde começaram a se desenvolver, ainda no feto. Os cientistas analisaram mais de um milhão de núcleos celulares individuais de 27 embriões em diferentes estágios (entre cinco e 14 semanas de gestação), o que permitiu visualizar como o órgão se desenvolve e se organiza ao longo do tempo. 

Linnarsson explica que, embora os resultados sejam exemplos de investigação fundamental em biologia molecular, os novos conhecimentos também podem lançar as bases para avanços médicos. Por exemplo, o grupo de trabalho do pesquisador usou abordagens semelhantes à do mapeamento celular para estudar diferentes tipos de tumores cerebrais, entre os quais o glioblastoma, cujo prognóstico ainda é desfavorável.

"As células tumorais lembram células-tronco imaturas e parece que estão tentando formar um cérebro, mas de forma totalmente desorganizada", explica. "O que observamos foi que essas células cancerígenas ativaram centenas de genes que são específicos delas, e pode ser interessante investigar se existe algum potencial para encontrar novos alvos terapêuticos."

Outro estudo, liderado por Nelson Johansen, do Instituto de Ciências Cerebrais Allen de Seattle, nos Estados Unidos, avaliou células cerebrais de 75 humanos adultos submetidos a cirurgias de epilepsia e tumores, indicando como essas estruturas variam entre os indivíduos. "Não existe um único protótipo de ser humano", escreveram, em um editorial da revista Science, a neurobióloga Alyssa Weninger e a especialista em regeneração celular Paola Arlotta, da Universidade de Harvard. "Um espectro de diferenças na variação genética e na resposta ambiental existe tanto em indivíduos saudáveis como em estados de doença", observaram.

Palavra de especialista // A um passo da compreensão

"O cérebro humano não é homogêneo. É composto por uma rede extremamente complexa de neurônios e células não neuronais, cada uma desempenhando funções diferentes. Mapear os diferentes tipos de células no cérebro e compreender como funcionam em conjunto irá, em última análise, nos ajudar a descobrir novas terapias que podem atingir tipos de células individuais relevantes para doenças específicas. Ampliar esse trabalho para um nível ainda maior de detalhe, com um número maior de cérebros, nos aproximará um passo da compreensão da biologia dos distúrbios neuropsiquiátricos e de como estes podem ser reabilitados."

Bing Ren, professor de medicina celular e molecular da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia, em San Diego

Inflamações na infância associadas a autismo

Também parte do projeto de mapeamento do cérebro, um artigo publicado na revista Science Translational Medicine, do grupo Science, demonstrou que a inflamação severa na primeira infância altera o desenvolvimento de células cerebrais vulneráveis, o que pode estar associado a distúrbios neurológicos como autismo e esquizofrenia. A descoberta, segundo os autores, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, pode levar a tratamentos para diversas condições do neurodesenvolvimento.

Usando a genômica unicelular para estudar os cérebros de crianças que morreram de doenças inflamatórias — como infecções bacterianas ou virais e asma —, os pesquisadores constataram que essa condição impede que um grupo específico de neurônios do cerebelo amadureçam completamente. Essa região é responsável pelo controle motor e funções cognitivas superiores usadas na linguagem, habilidades sociais e regulação emocional.

"Observamos o cerebelo porque é uma das primeiras regiões do cérebro a começar a se desenvolver e uma das últimas a atingir sua maturidade, mas permanece pouco estudada", diz Seth Ament, professor de psiquiatria que co-liderou a pesquisa. "Com a tecnologia relativamente nova de sequenciamento de RNA de núcleo único, poderíamos observar o nível celular para ver mudanças no cérebro. Isso nunca foi feito antes nesta faixa etária e no contexto da inflamação. A expressão genética no cerebelo de crianças com inflamação foi notavelmente consistente."

Tratamentos

Os pesquisadores examinaram tecidos cerebrais doados post-mortem de 17 crianças de 1 a 5 anos. Oito foram vítimas de condições que envolviam inflamação e nove morreram por acidentes. Nenhum dos doadores havia sido diagnosticado com distúrbio neurológico antes do óbito. Os dois grupos eram semelhantes em idade, sexo, raça/etnia e tempo desde a morte.

O estudo descobriu que dois tipos específicos, mas raros, de neurônios cerebelares eram mais vulneráveis à inflamação cerebral — os neurônios de Golgi e Purkinje. No nível unicelular, essas estruturas mostraram interrupção prematura de seu desenvolvimento. "É fundamental compreender estes mecanismos e mudanças ao nível celular durante o desenvolvimento do cérebro, na esperança de que algum dia possamos encontrar tratamentos para distúrbios do neurodesenvolvimento", afirmou, em nota, o reitor da Universidade de Maryland, Mark Gladwin. (Paloma Oliveto)

 

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Inflamações na infância associadas a autismo

Também parte do projeto de mapeamento do cérebro, um artigo publicado na revista Science Translational Medicine, do grupo Science, demonstrou que a inflamação severa na primeira infância altera o desenvolvimento de células cerebrais vulneráveis, o que pode estar associado a distúrbios neurológicos como autismo e esquizofrenia. A descoberta, segundo os autores, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, pode levar a tratamentos para diversas condições do neurodesenvolvimento.

Usando a genômica unicelular para estudar os cérebros de crianças que morreram de doenças inflamatórias — como infecções bacterianas ou virais e asma —, os pesquisadores constataram que essa condição impede que um grupo específico de neurônios do cerebelo amadureçam completamente. Essa região é responsável pelo controle motor e funções cognitivas superiores usadas na linguagem, habilidades sociais e regulação emocional.

"Observamos o cerebelo porque é uma das primeiras regiões do cérebro a começar a se desenvolver e uma das últimas a atingir sua maturidade, mas permanece pouco estudada", diz Seth Ament, professor de psiquiatria que co-liderou a pesquisa. "Com a tecnologia relativamente nova de sequenciamento de RNA de núcleo único, poderíamos observar o nível celular para ver mudanças no cérebro. Isso nunca foi feito antes nesta faixa etária e no contexto da inflamação. A expressão genética no cerebelo de crianças com inflamação foi notavelmente consistente."

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Os pesquisadores examinaram tecidos cerebrais doados post-mortem de 17 crianças de 1 a 5 anos. Oito foram vítimas de condições que envolviam inflamação e nove morreram por acidentes. Nenhum dos doadores havia sido diagnosticado com distúrbio neurológico antes do óbito. Os dois grupos eram semelhantes em idade, sexo, raça/etnia e tempo desde a morte.

O estudo descobriu que dois tipos específicos, mas raros, de neurônios cerebelares eram mais vulneráveis à inflamação cerebral — os neurônios de Golgi e Purkinje. No nível unicelular, essas estruturas mostraram interrupção prematura de seu desenvolvimento. "É fundamental compreender estes mecanismos e mudanças ao nível celular durante o desenvolvimento do cérebro, na esperança de que algum dia possamos encontrar tratamentos para distúrbios do neurodesenvolvimento", afirmou, em nota, o reitor da Universidade de Maryland, Mark Gladwin. (PO)

 

» Diferenças entre primatas

O conjunto de estudos divulgados ontem também aborda as diferenças entre o cérebro humano dos nossos parentes macacos mais próximos, os chimpanzés e gorilas. As comparações revelaram que todos partilham a arquitetura básica das células cerebrais, mas alterações nos genes usados por esses tipos celulares são diversas. Especificamente, muitos genes envolvidos nas conexões entre os neurônios e na formação de circuitos são diferentes entre humanos e outros primatas.

A um passo da compreensão

"O cérebro humano não é homogêneo. É composto por uma rede extremamente complexa de neurônios e células não neuronais, cada uma desempenhando funções diferentes. Mapear os diferentes tipos de células no cérebro e compreender como funcionam em conjunto irá, em última análise, nos ajudar a descobrir novas terapias que podem atingir tipos de células individuais relevantes para doenças específicas. Ampliar esse trabalho para um nível ainda maior de detalhe, com um número maior de cérebros, nos aproximará um passo da compreensão da biologia dos distúrbios neuropsiquiátricos e de como estes podem ser reabilitados."

Bing Ren, professor de medicina celular e molecular da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia, em San Diego