alimentação

Ultraprocessados: riscos também para os filhos

Em testes, filhotes de ratas que, na gravidez, ingeriram emulsificantes presentes nesses alimentos apresentaram deficiências metabólicas e cognitivas. Para especialistas, resultado reforça alertas sobre o consumo desses produtos por humanos

Alimentos ultraprocessados são conhecidos pelas associações com doenças metabólicas e cardiovasculares, e alguns deles, como os embutidos, estão na lista de cancerígenos da Organização Mundial da Saúde (OMS). Agora, um artigo espanhol mostra que dois emulsificantes — componentes comuns desses produtos — representam risco à prole quando ingeridos na gestação. Embora feito em ratos e, portanto, ainda sem implicação para a saúde humana, especialistas em nutrição destacam que o estudo traz mais uma evidência de que as substâncias industrializadas podem ser maléficas, exigindo novas pesquisas para garantir o consumo seguro.

Emulsificantes são uma classe de produtos que ajudam a preservar a textura de alimentos ultraprocessados, como alguns sorvetes, pães, misturas para bolos, sopas e molhos prontos para salada. Pesquisas anteriores associaram o consumo dessas substâncias ao aumento do risco de inflamação intestinal, obesidade e outras condições de saúde.

Como hábitos alimentares de gestantes e lactantes também foram relacionados a problemas de longo prazo nos descendentes, uma equipe do Instituto de Investigações Biomédicas Augusto Pi i Sunyer (Idibaps), em Barcelona, decidiu examinar se o consumo de dois emulsificantes muito comuns — metilcelulose, também prescrito como laxante, e polissorbato-80, composto sintético usado em alimentos, maquiagens e medicamentos — impactaria a saúde da prole.

Por serem substâncias potencialmente inseguras, os cientistas optaram por fazer os testes em animais em vez de humanos. Ratas de laboratório receberam água com os dois emulsionantes desde antes da gestação até a lactação. Elas ingeriram o equivalente à concentração máxima de cada produto permitida em alimentos para humanos pela Organização para Alimentação e Agricultura (FAO) e pela OMS. Para efeito de comparação, outras roedoras eram hidratadas com líquidos sem as substâncias.

Os pesquisadores descobriram que os descendentes dos animais que consumiram os dois emulsificantes apresentavam um risco maior de alguns problemas de saúde, incluindo deficiências metabólicas, cognitivas e psicológicas leves. Os efeitos foram mais fortes na prole do sexo masculino, embora tenham sido observados em ambos. Uma combinação de testes de expressão genética e exames laboratoriais sugeriu que o consumo materno da metilcelulose e do polissorbato-80 prejudicou o desenvolvimento dos circuitos neurais no hipotálamo dos filhos. Essa região do cérebro desempenha um papel central na regulação do metabolismo.

"Nosso estudo sugere que o consumo materno de emulsificantes pode afetar a saúde dos filhos, promovendo distúrbios metabólicos leves, estados semelhantes aos da ansiedade e de deficiências cognitivas", descreve Marc Claret, um dos autores. "Serão necessárias pesquisas adicionais para esclarecer melhor os efeitos sobre os descendentes. Ainda assim, com base nas descobertas, apelamos para uma maior sensibilização para os riscos potenciais do consumo de alimentos ultraprocessados pelas mães", diz. No artigo, publicado na revista Plos Biology, eles expressam especial preocupação com produtos considerados saudáveis, como certos industrializados vegetarianos e veganos, que contêm emulsionantes potencialmente prejudiciais.

Duane Mellor, nutricionista e professor da Universidade de Aston, no Reino Unido, destaca que os efeitos observados nos ratos podem não se repetir em humanos. "Ainda não é possível afirmar que as descobertas em ratos se aplicariam definitivamente aos seres humanos, uma vez que existem diferenças na anatomia intestinal e outros fatores complexos, como a genética, o microbioma intestinal, o sistema imunológico e fatores ambientais. Tudo isso influencia o desenvolvimento no útero e durante a infância", pondera Mellor, que não participou do estudo.

Além disso, o nutricionista ressalta que existem mais de 60 emulsionantes na indústria, o que dificulta afirmar, categoricamente, que essa classe de substâncias é prejudicial. "Algumas são naturais e até podem ter benefícios para a saúde. A lecitina, por exemplo, encontrada nos ovos e na soja, contém colina, que tem sido associada a benefícios para a saúde e, em mulheres que não têm um gene chamado Snip, pode ser essencial durante a gravidez", argumenta. "Outros emulsionantes são sintéticos, podendo alterar o microbioma intestinal e impactar os marcadores de saúde, como visto nesse estudo com ratos", diz.

Vigilância

Para Ester López-García, professora de epidemiología do Departamento de Medicina Preventiva e Saúde Pública da Universidade Autônoma de Madri, embora não se deva extrapolar os resultados de estudos em animais para humanos, indicativos de que podem ser prejudiciais exigem cuidados das agências reguladoras de alimentos. "Quando são detectados potenciais efeitos nocivos de algumas substâncias, os órgãos públicos que zelam pela saúde das pessoas têm a obrigação de examinar as provas científicas e decidir se a autorização de introdução no mercado dessa substância deve ser revogada", acredita a especialista, que não está envolvida no estudo espanhol.

Segundo López-García, as evidências de estudos epidemiológicos são suficientes para desaconselhar o consumo de produtos ultraprocessados. "As recomendações dietéticas para a população em geral, que enfatizam o consumo de alimentos dentro dos padrões alimentares tradicionais e recomendam minimizar o consumo de produtos processados, ricos em sal, açúcar, gorduras de baixa qualidade e aditivos alimentares, também se aplicam a mulheres grávidas", ressalta.

Especialista em gastroenterologia e pesquisador do King's College London, no Reino Unido, Aaron Bancil considera os resultados do estudo preocupantes. "O artigo se soma ao conjunto de evidências que sugerem que o consumo de emulsificantes alimentares pode ser prejudicial em doses equivalentes às consumidas por alguns humanos", afirma. "É imperativo que cada emulsionante seja investigado individualmente, pois é provável que tenham efeitos diferentes, podendo alguns deles impactar negativamente a saúde. O que é certo é que necessitamos urgentemente de estudos de alta qualidade em humanos para validar esses resultados e, posteriormente, direcionar orientações alimentares e políticas de saúde se necessário."

 


Faltam testes de longo prazo

"Esse estudo é importante para fornecer evidências de potenciais efeitos nocivos à saúde decorrentes do consumo de aditivos alimentares — neste caso, emulsificantes. Os resultados se somam a outras evidências que vêm indicando como essas substâncias, por exemplo, alteram a parede intestinal, levando a diversos danos à saúde. Vale ressaltar que o estudo examinou o efeito do emulsificante de forma isolada, o que torna o consumo de alimentos ultraprocessados ainda mais preocupante: esses alimentos combinam aditivos de diferentes naturezas, o que poderia amplificar os danos. Apesar de serem aprovados para consumo pelas agências reguladoras responsáveis pela segurança alimentar de cada país, é comum que aditivos como os emulsificantes não sejam submetidos a testes de longo prazo para verificar seus efeitos. A ciência indica que, ao contrário do que se pensa, não há como garantir a segurança no consumo regular dessas substâncias. Os resultados reforçam a necessidade de manter uma dieta baseada em alimentos frescos não só durante a gravidez, mas em todas as fases da vida. Isso é crucial para evitar o consumo de aditivos alimentares e, mais importante ainda, para garantir uma ingestão nutricional rica e equilibrada a partir de alimentos reais."

Carlos Augusto Monteiro, pesquisador do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)

três perguntas para Javier Sánchez Perona, pesquisador em nutrição e metabolismo lipídico do Conselho Nacional de Pesquisa Espanhol (CSIC)

Qual a associação entre os emulsificantes e os prejuízos à saúde?
Há pouco mais de uma década, sabemos que os alimentos ultraprocessados estão ligados a diversas doenças, cujo número cresce à medida que aumenta o conhecimento científico. No entanto, há muito pouca informação disponível que possa estabelecer relações de causa e efeito entre o consumo desses produtos e o desenvolvimento de doenças. Também não temos informações suficientes sobre os mecanismos envolvidos.
Um estudo espanhol associou o consumo de dois emulsificantes por roedores a diversos problemas na prole. O senhor poderia comentar os resultados?
Os investigadores do Idibaps de Barcelona descobriram que ratos cujas mães consumiam emulsionantes apresentavam um risco aumentado de problemas metabólicos, cognitivos e psicológicos, especialmente os machos. Os resultados indicam que o consumo materno de emulsionantes pode perturbar o desenvolvimento dos circuitos neurais no hipotálamo da prole, região que regula o metabolismo. É um estudo importante porque contribui para a compreensão dos componentes dos alimentos ultraprocessados que podem contribuir para seus efeitos negativos à saúde.

Quais as limitações do estudo?
Em primeiro lugar, trata-se de um estudo realizado em ratos, pelo que as suas conclusões não podem ser extrapoladas para humanos. Também existem muitos tipos de emulsionantes, mas os investigadores testaram apenas dois deles. É possível que outros “mais naturais”, como a lecitina, tenham efeitos diferentes. A pesquisa sobre alimentos ultraprocessados em humanos é muito complexa por vários motivos, um dos quais é ético. Pode ser considerado antiético administrar uma dieta rica em alimentos ultraprocessados a um grupo de pessoas para um estudo. Essa é uma das razões pelas quais existem tão poucos ensaios clínicos que avaliaram o efeito em humanos. Portanto, embora a ligação entre alimentos ultraprocessados e doenças seja conhecida, a ciência ainda não foi capaz de demonstrar uma ligação clara de causa e efeito e informações detalhadas sobre os mecanismos envolvidos.