O diagnóstico precoce do câncer pode ajudar o paciente a conseguir um tratamento com maior chance de melhores resultados. Pensando nisso, cientistas da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, em parceria com pesquisadores da Austrália, criaram bactérias capazes de detectar a presença de DNA tumoral em um organismo vivo antes do surgimento dos sintomas da doença. No trabalho, detalhado, nesta quinta-feira (10/08), na revista Science, a inovação detectou câncer no cólon de camundongos. Segundo os especialistas, a novidade deve abrir caminho para novos biossensores capazes de localizar tumores, infecções e outras doenças.
De acordo com os pesquisadores, bactérias já foram projetadas para realizar diversas funções diagnósticas e terapêuticas, mas faltava a capacidade de identificar sequências específicas de DNA e mutações fora das células. A nova estratégia, chamada Ensaio Celular para Transferência Gênica Horizontal Discriminada por CRISPR Direcionado, ou Catch, foi projetada para fazer exatamente isso.
Os tumores costumam dispersar seu DNA ao redor deles. Diversas tecnologias podem analisar esse material genético em laboratório, mas não conseguem detectar onde ele é liberado. A equipe internacional de cientistas projetou bactérias através da tecnologia CRISPR — uma ferramenta de edição de genes que funciona como um corretor para o DNA das células — para detectar a presença de DNA do tumor. "Quando começamos esse projeto, há quatro anos, nem mesmo estávamos certos de que usar bactérias como sensor para DNA de mamíferos era possível", conta, em nota, o líder do ensaio, Jeff Hasty.
Segundo o também professor na Universidade da Califórnia, a detecção de cânceres gastrointestinais e lesões pré-cancerosas é uma oportunidade clínica para aplicar a invenção. Isso porque pôde-se usar bactérias já presentes no cólon. A equipe escolheu a Acinetobacter baylyi, que, segundo eles, era "naturalmente competente" para exercer a função de, implantada no intestino, detectar o DNA liberado por tumores colorretais.
O artigo revela que os estudiosos projetaram, construíram e testaram a A. baylyi como um sensor para identificar o DNA de um gene específico, o KRAS, que sofre mutação em muitos casos de câncer. Pela técnica de edição genética, a bactéria foi programada para diferenciar cópias mutantes de KRAS das cópias normais.
Após serem colocadas em contato com o DNA do câncer, as bactérias foram cultivadas em laboratório junto com o antibiótico canamicina. Somente aquelas que pegaram partes estranhas do gene KRAS, que são encontradas em pedaços de tecido propensos a desenvolver câncer, conseguiriam ficar vivas na cultura.
- 80% dos casos de câncer de intestino seriam evitados com exame de rotina
- Fagoterapia: tratamento usa vírus para curar infecção por bactéria
Amílcar Tanuri, doutor em genética e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), detalha como a tecnologia funciona: "Eles inseriram a bactéria no camundongo. Depois, fizeram uma lavagem no intestino dos animais e cultivaram essa bactéria com canamicina. Ela crescer na presença do antibiótico é o indicativo de que encontrou o DNA do tumor nas cobaias", diz. "Esse é um diagnóstico muito preciso e fácil de fazer."
Mais investigações
Daniel Worthley, coautor do estudo e pesquisador de câncer da Clínica de Colonoscopia em Brisbane, na Austrália, pontua que, apesar dos resultados positivos obtidos no trabalho, a invenção não está pronta para uso clínico. "Mais trabalho é necessário para aumentar a eficiência da detecção de DNA, avaliar de forma mais crítica o desempenho desse biossensor em comparação com outros testes de diagnóstico e, é claro, garantir a segurança dos pacientes e do ambiente", lista. "Essas etapas necessárias estão sendo realizadas."
Segundo ele, o uso do biossensor poderá reduzir os custos e o tempo de diagnóstico. "No fim das contas, ele é mais barato, melhor e mais rápido do que as abordagens diagnósticas existentes", explica. Para Worthley, porém, o aspecto mais emocionante dos cuidados com a saúde celular, não está na detecção da doença, mas na combinação da detecção com a resposta celular — ou seja, o tratamento.
"Isso é algo que um laboratório sozinho nunca poderá fazer. Biossensores podem ser programados para que um sinal da doença, nesse caso, uma sequência de DNA, ative circuitos celulares e resulte em uma terapia biológica específica entregue no momento e no local da detecção", explica o gastroenterologista.
Salmo Raskin, especialista em genética e diretor do Laboratório Genetika, em Curitiba, concorda que há chance de a aplicação da tecnologia ser ampliada. "Poderá ser usada para tratamentos não só de câncer, mas de doenças metabólicas, autoimunes e inflamatórias, visto que bactérias bioengenhadas serão capazes de produzir proteínas, ácidos nucléicos e outras biomoléculas", explica.
A equipe trabalha otimizando o biossensor. Worthley contextualiza que usar a invenção para detectar e prevenir o câncer colorretal em seres humanos é uma jornada longa que, provavelmente, levará muitos anos e envolverá "uma quantidade substancial de trabalho laboratorial". "Essa tecnologia Catch será útil onde e quando a detecção e resposta de DNA forem necessárias. É a vida curando a vida."
Palavra de especialista: Aplicações exponenciais
"Muito provavelmente, os obstáculos de segurança e técnicos que ainda existem serão superados, e essa tecnologia poderá ser usada em humanos, trazendo enormes benefícios. As aplicações são exponenciais, sendo a mais direta a capacidade de analisar o genoma de células que se destacam do tecido neoplásico, que sofre com crescimento anormal, podendo compreender esses tumores, a evolução genômica deles e, inclusive, selecionar tratamentos para essas neoplasias. Poderão ainda ser usadas para tratamentos de doenças metabólicas, autoimunes e inflamatórias. Essa tecnologia também poderá ser aplicada para estudos clínicos que visam compreender os mecanismos moleculares e citológicos que levam a causar doenças. O ponto principal da descoberta é o potencial de captar informações sobre predisposição e estágios iniciais de câncer, de modo não invasivo."
Salmo Raskin, especialista em genética e diretor do Laboratório Genetika, em Curitiba
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores.