O calor extremo que afeta boa parte do globo vai continuar e confirma o alerta de cientistas climáticos sobre 2023. Em maio, a Organização Meteorológica Mundial (OMM), organismo das Nações Unidas, destacou que, em alguns meses deste ano, a temperatura ultrapassaria 1,5ºC, em comparação à era pré-industrial, o que aconteceu em junho. A previsão baseia-se em séries históricas e modelagens e leva em conta a volta do El Niño — fenômeno natural que, segundo pesquisadores, é intensificado por um século de aquecimento causado por atividades humanas.
A última sexta-feira 7 foi o dia mais quente desde que a temperatura começou a ser registrada, no fim do século 19. Os 17,24ºC superaram o recorde anterior, de 2016, quando a média mundial foi de 16,94ºC. Nas duas próximas semanas, de acordo com a OMM, pode-se esperar mais anomalias climáticas, com até 5ºC acima dos registros históricos na região mediterrânea. Há três dias, a Agência Espacial Norte-Americana (Nasa) divulgou que nenhum mês de junho foi tão quente quanto o de agora.
Em nota, Christopher Hewitt, diretor de Serviços Climáticos da OMM, afirma que o pior está por vir. "O calor excepcional em junho e no início de julho ocorreu no início do desenvolvimento do El Niño, que deve alimentar ainda mais o calor tanto na terra quanto nos oceanos e levar a temperaturas mais extremas e ondas de calor marinhas", disse. "Estamos em território desconhecido e podemos esperar que mais recordes caiam à medida que o El Niño se desenvolve. E esses impactos se estenderão até 2024. Essa é uma notícia preocupante para o planeta."
O Climate Watch Advisory, que orienta os serviços meteorológicos da Eurásia, destaca que, nas próximas semanas, os registros no Hemisfério Norte, onde é verão, atingirão de 35ºC a 40ºC. Os Estados Unidos enfrentam, neste fim de semana, uma onda de calor "extremamente perigosa", de acordo com o Serviço Meteorológico Nacional, com termômetro marcando até 47°C. Não só a porção terrestre do globo baterá recordes: a superfície do Mar Mediterrâneo deve ultrapassar 30ºC em sua maior parte ocidental.
No Brasil, não houve ondas de calor tão graves em 2023, mas os boletins do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) mostram que, em quase todo o país, os termômetros ficaram acima da média. Nas regiões costeiras, um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) afirma que, nos últimos 40 anos, extremos de temperatura aumentaram tanto em frequência quanto em intensidade. A pesquisa, publicada na revista Scientific Reports, mostra que, em quatro décadas, eventos do tipo cresceram 84% em São Paulo, 100% no Rio Grande do Sul e 188% no Espírito Santo. Embora esses estados tenham registrado as maiores elevações, os cientistas constataram a tendência em todo o litoral brasileiro.
"O aumento de ondas de calor e de frio tem vários impactos em todo o mundo, que vão desde o desconforto térmico até o aumento de incêndios florestais, problemas de saúde e da mortalidade de animais, plantas e dos seres humanos, especialmente, idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade", destaca Ronaldo Christofoletti, coordenador da pesquisa e professor do IMar/Unifesp. "Estudos recentes demonstram um aumento de quase 70% na mortalidade de idosos devido ao calor intenso. Ao longo dos últimos anos, foram vários casos de mortalidade por ondas de calor, como visto em Espanha, Canadá e Portugal."
Fenômeno natural, o El Niño ocorre periodicamente — o último foi há quatro anos — e é causado pelo superaquecimento da porção equatorial do Oceano Pacífico. Pesquisas indicam, porém, que o evento tem sido intensificado pelas mudanças climáticas. "O El Niño ocorre naturalmente, mas, nos últimos 50 anos, eventos mais fortes aconteceram com maior frequência. A mudança climática estava desempenhando um papel? Nossa pesquisa se propôs a responder a essa pergunta", conta Wenju Cai, do Centro de Pesquisa dos Oceanos do Hemisfério Sul (CSHOR), na Austrália.
A equipe respondeu, segundo ele, a uma dúvida que intriga pesquisadores há mais de três décadas. "Os cientistas, há muito, observam uma correlação entre os impactos das mudanças climáticas nos oceanos e na atmosfera e o aumento das emissões de gases de efeito estufa da atividade humana", diz.
A pesquisa examinou quando essa atividade pode ter começado a tornar os eventos El Niño e La Niña (resfriamento do Pacífico Equatorial) mais extremos. "Nossa análise profunda encontrou uma relação entre a atividade de gases de efeito estufa causada pelo homem e as mudanças no El Niño e La Niña", diz Cai. O estudo foi realizado durante cinco anos e utilizou 43 modelos, que simulam o clima na Terra desde 1901.
Palavra de especialista: Sinal de alerta severo
"O mundo está aquecendo como os cientistas previram, e a mudança climática antropogênica é a razão. Nós quebramos o aquecimento de 1,5ºC periodicamente em junho — o que significa que não violamos o Acordo de Paris, pois isso exige que as temperaturas médias de longo prazo estejam consistentemente acima desse limite. Mas, dito isto, estamos chegando, e isso deve ser um sinal de alerta severo de que estamos entrando em um território desconhecido muito quente. Atualmente, estamos com o El Niño, que é um fenômeno natural em que experimentamos temperaturas globais mais altas em média e, portanto, não é surpresa que estejamos ultrapassando temporariamente os limites de 1,5ºC. Exigimos uma ação urgente e uma redução significativa nas emissões para evitar que isso ocorra em longo prazo. Esse é apenas um lembrete de quão perto estamos chegando e quão sérios são os impactos."
Melissa Lazenby, professora de mudanças climáticas na Universidade de Sussex,
no Reino Unido
Culpa não é só do El Niño
A onda de calor que tem afetado boa parte do mundo não é culpa apenas do fenômeno natural El Niño. "O clima extremo — uma ocorrência cada vez mais frequente em nosso clima em aquecimento — está tendo um grande impacto na saúde humana, em ecossistemas, economias, agricultura, energia e abastecimento de água. Isso destaca a crescente urgência de reduzir as emissões de gases de efeito estufa o mais rápido e profundamente possível", disse, em nota, o secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial (OMM), Prof. Petteri Taalas. "Temos que intensificar os esforços para ajudar a sociedade a se adaptar ao que infelizmente está se tornando o novo normal."
Em fevereiro, por exemplo, a temperatura começou a aumentar e, em abril, o sudoeste da Europa e o norte da África registraram temperaturas acima de 40ºC, em uma onda de calor recorde para esta época do ano. Segundo um estudo da rede World Weather Attribution, o evento seria praticamente improvável sem as mudanças climáticas provocadas pelo homem. Os cientistas concluíram que as alterações associadas às emissões de gases de efeito estufa tornaram a onda de calor pelo menos 100 vezes mais provável, com temperaturas até 3,5°C mais quentes, em um cenário sem mudanças climáticas.
Para chegar a essas conclusões, os especialistas usaram registros meteorológicos aplicados a um modelo. Embora o evento de abril tenha sido considerado incomum pela equipe, a tendência é que fenômenos do tipo se tornem cada vez mais frequentes. "Com o aquecimento do planeta, essas situações se tornarão mais frequentes e exigirão planejamento de longo prazo, incluindo a implementação de modelos agrícolas sustentáveis e políticas eficazes de gerenciamento de água", disse, em nota, Fatima Driouech, professora da Universidade Politécnica Mohammed VI, do Marrocos, e um dos autores do estudo.
Em março, os satélites do Copernicus Sentinel-3 registraram uma onda de calor severa no Uruguai e na Argentina. Maio foi a vez da América do Norte quebrar recordes de temperatura, com incêndios devastando florestas nos Estados Unidos, no México e no Canadá. Em junho, Israel e parte do Caribe sofreram com ondas de calor — em Porto Rico, o termômetro marcou 52º C. Agora, o evento extremo atinge a Europa, com o topo do globo, o Ártico, também quebrando recordes.
Surtos
"O El Niño já chegou, e isso, somado à crise climática, significa que o mundo experimentará novos recordes de temperatura e extremos climáticos", destaca a física climática Anna Cabré, consultora de pesquisa na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Ela cita possíveis desdobramentos: "Impactos na saúde, como surtos de malária, nos ecossistemas (especialmente corais), na infraestrutura (redes energéticas em seus limites), na segurança alimentar (quebra de safras afetando principalmente pequenos agricultores), nos conflitos (episódios de calor intenso estão intimamente relacionados a diferentes tipos de violência), entre outros".
O problema, alerta Cabré, é que o planeta não está preparado para lidar com essas temperaturas. "Devemos cooperar para garantir respostas imediatas às crises que surgem, mas também entender que reduções drásticas nas emissões de gases de efeito estufa são urgentes e que uma adaptação sustentável de longo prazo deve ser preparada levando em consideração os riscos globalizados e transfronteiriços." (PO)