A invenção da eletricidade permitiu aos seres humanos dissipar a escuridão. Mais de 140 anos após a criação da lâmpada elétrica, luzes artificiais estão amplamente distribuídas em todo o mundo. Atingem, inclusive, os ambientes naturais, que, alertam especialistas, acabam sendo prejudicados pelo excesso de iluminação. Uma série de estudos publicados, em junho, na revista Science revela que as pessoas também não estão imunes aos danos da poluição luminosa, que está crescendo tanto em intensidade quanto em abrangência geográfica.
Um dos efeitos que preocupam é o aumento do brilho do céu, suprimindo a escuridão e afetando áreas terrestres e marinhas. Annika Jägerbrand e Kamiel Spoelstra, da Universidade de Gävle, na Suécia, combinaram dados de sensoriamento remoto sobre a emissão de luz e informações biológicas digitalizadas sobre espécies e rotas migratórias e observaram as repercussões negativas da luz antropogênica em diversos animais.
No caso das aves, a mudança na migração é um dos principais problemas. Elas são atraídas e desorientadas pelas luzes artificiais, principalmente as fontes intensas e pontos brilhantes em locais escuros. Além disso, colidem com edifícios, semáforos, plataformas de petróleo e navios, desviando-se de seus locais adequados de parada.
Experimentos em laboratório também demonstram diminuição na atividade de espécies de mamíferos noturnos devido à exposição à luz. Muitos animais reduzem naturalmente suas atividades em resposta ao brilho da Lua, mas apresentam um comportamento semelhante quando expostos à luz artificial. Esse contato não natural também pode alterar o comportamento espacial de roedores, reduzir a longevidade e afetar a reprodução dos animais, indica a dupla.
Jägerbrand e Spoelstra também enfatizam que essas alterações inevitavelmente interferem nas dinâmicas alimentares. "A luz pode facilitar a busca por alimento para predadores, concentrando espécies de presas, como no caso de espécies de morcegos que capturam insetos voadores atraídos pela luz", ilustram, no artigo.
E não são só os animais os afetados. Victor Diego Lisboa, biólogo e professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal, lembra que as consequências do excesso de luminosidade afetam até mesmo a fotossíntese. "A luz em excesso força a planta a crescer de forma anormal, atrapalhando sua floração e interferindo em todo o ecossistema natural próximo às grandes cidades", explica.
Trabalho noturno
No caso dos seres humanos, a lista de prejuízos é extensa. Uma pesquisa de revisão realizada pela Universidade de Tecnologia de Gdask, na Polônia, traz evidências de que a exposição à luz artificial durante a noite pode sobrecarregar o sistema visual e afetar o ciclo circadiano — o chamado relógio interno do corpo —, reduzindo, por exemplo, a secreção de melatonina, o que prejudica o sono.
Segundo os autores, liderados por Karolina Zielinska-Dabkowska, os efeitos adversos da iluminação externa na saúde humana são reais e aumentam o risco de doenças crônicas. O trabalho tem como base estudos sobre a exposição à luz durante a noite, especialmente para trabalhadores noturnos, que indicam que a situação não apenas pode ser uma possível causa de câncer, mas também um fator de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2, hipertensão, obesidade e depressão, entre outros problemas de saúde.
Mario Leocadio-Miguel, da Associação Brasileira do Sono, vincula essas complicações à redução da amplitude do ciclo claro/escuro. "Isso acaba deixando nosso organismo mais propenso ao desenvolvimento de diversas enfermidades, como câncer, doenças cardiovasculares e metabólicas, além das neuropsiquiátricas, como a depressão", explica. A equipe polonesa também encontrou evidências de efeitos adversos imediatos nos trabalhadores, como distúrbios do sono, dificuldades na realização de atividades laborais e ocorrência de lesões.
Segundo Samuel Campos Silva, neurologista do Hospital Encore de Goiânia, esses problemas estão relacionados à falta de um sono sem qualidade e não reparador. "Vê-se ainda alterações emocionais, fadiga e falta de energia, sintomas diversos e que podem causar prejuízos pessoais e profissionais", completa. "Estudos concluíram que pode ocorrer também alteração da microbiota intestinal, disfunção hormonal, sintomas comportamentais e, inclusive, atrapalhar o processo de regeneração celular."
Em nota, a equipe da Universidade de Tecnologia de Gdask defende a adoção de "melhores maneiras para gerenciar a poluição luminosa em benefício da saúde pública e da sociedade no ambiente urbano". A opinião é compartilhada por Jacques Philippe Bucher, biólogo e ex-professor da Universidade de Brasília (UnB), que espera um maior empenho para o enfrentamento do problema. "Iniciativas de redução da emissão de luz artificial têm sido discutidas em convenções específicas, mas ainda de forma tímida. Por exemplo, a redução ou mesmo o banimento dos outdoors iluminados sequer entrou na Agenda de Desenvolvimento Sustentável de 2030 da ONU", lamenta.
Monitorar é um desafio, alertam pesquisadores
A cidade de São Paulo vista do espaço: imagens fora da Terra podem ajudar a avaliar o fenômeno
Nasa/Divulgação
Chegar a estratégias eficazes de combate à poluição luminosa também é um campo de investigação em alta. De acordo com uma pesquisa conduzida por integrantes da Academia Eslovaca de Ciências e da Universidade Comenius, na Eslováquia, o estudo desse fenômeno envolve uma ampla variedade de técnicas e dispositivos de medição. John Barentine, coautor do estudo e pesquisador do Silverado Hills Observatory, nos Estados Unidos, chegou a três métodos principais para essa avaliação.
O primeiro consiste na observação da Terra a partir do espaço, utilizando satélites artificiais que capturam imagens do planeta durante a noite. Essas imagens registram a luz emitida para cima, e essas informações frequentemente são usadas como parâmetro para estimar a emissão total de luminosidade. Além disso, é possível realizar observações do céu noturno a partir do solo. Isso é feito por meio do uso de detectores simples, de fácil implantação no campo, que detectam diferentes faixas de cores, somam os valores e fornecem um número que representa o brilho do céu noturno.
Há ainda uma variação do segundo método, usando câmeras mais sofisticadas que fotografam parte ou todo o céu noturno e fornecem informações sobre o brilho. "Isso não apenas ajuda a identificar as direções das fontes de luz no solo que contribuem para a poluição do céu noturno, mas também nos fornece dados mais detalhados sobre a cor dessas fontes", explica Barentine. "Esses dados são importantes porque sabemos, a partir de pesquisas biológicas, que a luz de comprimento de onda curto (azul) é especialmente prejudicial para pessoas e a maioria da vida selvagem."
O cientista considera que esse tipo de ensaio conecta estudiosos de muitas áreas, o que ajuda a melhorar a compreensão dos fenômenos desencadeados pela poluição luminosa. "Impulsiona toda a ciência. Nenhum ato para combater esse problema é pequeno demais. Proprietários de imóveis podem revisar a iluminação externa de suas propriedades e fazer mudanças que vão melhorar seus espaços externos durante a noite e reduzir os custos de energia", sugere. "Todos podemos nos educar sobre a poluição luminosa e aprender sobre as soluções. Se todos fizermos isso, acredito que poderemos resolver o problema em uma geração."
Design
O estudo eslovaco sugere também que o design de iluminação externa deve minimizar a quantidade de luz azul emitida. Segundo a designer Lana Rocha, especialista em iluminação, os profissionais da área estão cada vez mais conscientes da importância de desenvolver projetos que contemplem as necessidades funcionais e estéticas, mas que também minimizem o desperdício e evitem o excesso de luz direcionadas ao céu. "Percebo essa preocupação também nas indústrias que desenvolvem produtos, onde o design tem se voltado para peças com temperatura de luz mais aquecida, uso de led e peças que permitam a projeção para baixo."
Paula Fábrega Branisso, endocrinologista do Sírio-Libanês, em Brasília, pontua que, pela dificuldade de regular a luminosidade em ambientes externos, é importante que as pessoas façam isso dentro de casa. "Esse é um problema importante, e medidas públicas que tentem reduzir essa exposição são benéficas. Como medidas individuais, podemos sugerir o uso de cortinas blackout para minimizar o fator da iluminação externa, lembrando que é importante termos a luz da manhã, necessária para um despertar natural." (Isabella Ameida)
Palavra de espeialista: Planeta pode ficar inabitável
"Todas as formas de poluição afetam a vida no planeta Terra. Os seres vivos mostram respostas complexas em relação a esses impactos, e entendê-los ainda é um desafio para nós cientistas. A poluição luminosa tem aumentado significativamente com o avanço das civilizações. Com o excesso de luminosidade das cidades, algumas espécies trocam seus horários de atividade, sendo mais ativos durante a noite. Esse comportamento alterado não pode ser visto apenas como uma simples mudança na rotina dos animais, capazes de fácil readaptação. Dias maiores ou menores, ou seja, com mais ou menos luz, são também naturalmente percebidos como estímulos para início do período reprodutivo. A longo prazo isso pode acarretar a extinção de populações inteiras de invertebrados, anfíbios, répteis, além de aves e mamíferos. Importante mencionar que extinguir outras espécies é tornar o planeta também inabitável para nós humanos, dados os serviços ecossistêmicos fornecidos por outros seres vivos, como a polinização de plantas que usamos em nossa alimentação. Entender a necessidade de convivermos de forma sustentável no globo é o primeiro passo para reduzirmos todas as formas de poluição. Alguns países têm adotado guias protocolares para redução ecológica da poluição luminosa. O Brasil é um dos países com maior biodiversidade do mundo. Lidar com essa riqueza é uma grande responsabilidade e desafio, pois precisamos estar sempre na vanguarda."
Nathalie Citeli, bióloga, doutora em zoologia, professora da Universidade Católica de Brasília