"Quando uma mãe ou um pai pega um livro e acomoda o filho em seu colo ou ao seu lado, coisas mágicas podem acontecer nesse pequeno instante. Ler é um dos maiores presentes que podemos dar a eles", diz Renata Guimarães, mãe de Isabela, 4 anos, e Rafael, 1. Um estudo publicado, ontem, na revista Psychological Medicine tenta destrinchar essa magia relatada pela advogada de 36 anos. Pesquisadores do Reino Unido e da China constataram que crianças que têm contato com a leitura por prazer no início da infância tendem a ter desempenho superior em testes cognitivos e melhor saúde mental quando entram na adolescência.
Os benefícios são resultados de uma média de 12 horas por semana de leitura. A hipótese do grupo é de que o hábito está relacionado a uma estrutura cerebral aprimorada. Barbara Sahakian, uma das responsáveis pela pesquisa, conta que o objetivo inicial era descobrir se pessoas que leram por prazer na infância teriam, mais tarde, melhores resultados em termos de cognição e menos problemas comportamentais.
"Essa dúvida pareceu especialmente oportuna diante dos bloqueios pandêmicos em razão da covid-19, quando, em muitos países, creches e escolas primárias foram fechadas, e pelo fato de a leitura por prazer ser uma intervenção de custo relativamente baixo", afirma a também professora do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Cambridge.
Para o trabalho, a equipe analisou uma ampla gama de dados do Cérebro e Desenvolvimento Cognitivo do Adolescente (ABCD), um programa de pesquisa estadunidense com dados de 10.243 adolescentes. Quase metade dos jovens, 48%, teve pouca experiência de leitura por prazer na primeira infância ou só começou a fazê-lo mais tarde. O restante do grupo manteve o hábito entre três e 10 anos.
Foram analisados entrevistas clínicas, testes cognitivos, avaliações mentais e comportamentais e varreduras cerebrais, na tentativa de comparar aqueles que começaram a ler por prazer em uma idade relativamente precoce (entre 2 e 9 anos) com os que começaram mais tarde ou não fizeram. Fatores que poderiam influenciar nos resultados, como o status socioeconômico, também foram considerados.
Sahakian explica o que pode ter levado ao melhor desempenho cognitivo entre os jovens que adquiriram o hábito na primeira infância. "Durante a leitura, a criança está ouvindo e assumindo a fala e, ao conversar sobre as imagens ou a história, o pensamento criativo e a imaginação podem ser estimulados. Tudo isso traz benefícios para futuras habilidades cognitivas mais complexas e também para habilidades sociais", afirma.
Thiago Blanco, psiquiatra da infância e adolescência e doutor em psiquiatria e psicologia médica pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), lembra que essa experiência exercita a memória e forma novas conexões neuronais. "A leitura é uma função que exige o desenvolvimento de uma série de funções psíquicas e funções cerebrais. Para fazê-la, é preciso que várias dessas funções estejam funcionando ao mesmo tempo, o que faz com que as áreas associativas do cérebro acabem se desenvolvendo", explica.
Raphael Moura Cardoso, professor do Departamento de Processos Psicológicos Básicos da Universidade de Brasília (UnB), enfatiza que o envolvimento da criança com os elementos da leitura também influencia aspectos intelectuais e emocionais. "A criança deve estar focada naquela atividade e não em outra, ter em mente a trama, as personagens e os acontecimentos que orientam as ações e diálogos, avaliar as expectativas e o desfecho da trama, o sentido da história. Várias dessas habilidades constituem aquilo que denominamos de inteligência, embora aspectos emocionais também possam ser trabalhados", ressalta.
Ainda de acordo com o psicólogo, o hábito de leitura por prazer na infância depende de vários fatores, desde a presença desse hábito entre pais até a disponibilidade de livros. Cardoso reforça a necessidade da participação familiar neste estímulo. "É recomendável que os pais participem desse momento, seja realizando leitura conjunta, seja conversando sobre a leitura de sua criança", indica.
Em voz alta
Essa sempre foi uma preocupação para Renata Guimarães. A advogada conta que, com o nascimento da filha mais velha, ela começou a estudar sobre leitura em voz alta e procurar pesquisas científicas que comprovassem a eficácia da prática para crianças. "Comecei a ler por cerca de cinco a 10 minutos por dia para a minha primogênita quando ela tinha cerca de 4 meses. Então, quando o meu caçula nasceu, ele já estava habituado com a leitura, pois já me ouvia desde a barriga", relata.
A Isabela começa a reconhecer as letras, orgulha-se a mãe, e os avanços não param por aí. Renata conta que é possível perceber, no dia a dia, como a prática de leitura amplia o desenvolvimento dos filhos, que estão cada vez mais criativos e curiosos. "O estímulo aqui em casa começou cedo, e a cada dia colho os benefícios. Sabendo escolher livros adequados a cada faixa etária, os benefícios são inúmeros", garante. "Meu sonho é que todos os pais saibam a importância e os benefícios a curto e a longo prazo quando o hábito da leitura em voz alta vira uma prática rotineira em casas. Ler para os nossos filhos é um ato de amor".
Depressão
A pesquisa publicada na Psychological Medicine também demonstra que crianças que leem por prazer na infância tendem a ter uma melhor saúde mental durante a adolescência. Os cientistas observaram melhor bem-estar mental, menos sinais de estresse e depressão, melhor atenção e menos problemas comportamentais, como agressividade e quebra de regras, nos jovens com esse perfil.
Segundo Isabel Santos, psicóloga infantil e mestre em ciências do comportamento pela Universidade de Brasília (UnB), manter o hábito na adolescência pode gerar benefícios para a vida adulta, como o favorecimento de interações sociais mais saudáveis e a redução dos riscos de desenvolvimento de transtornos emocionais. "A leitura se faz um rico instrumento na medida em que amplia a compreensão empática, auxilia no processo de autoconhecimento, estimula funções cognitivas de atenção, raciocínio e compreensão verbal e fortalece habilidades criativas. Esses são aspectos importantes para o desenvolvimento do adolescente", detalha.
Menos tempo nas telas
Outro benefício relacionado ao hábito da leitura na primeira infância é a tendência de, na adolescência, passar menos tempo na tela de dispositivos eletrônicos — como celulares ou tablets. Jovens que tiveram essa experiência também tendem a ter um período de sono maior, mostra o estudo divulgado na revista Psychological Medicine.
"Como estudamos a leitura por prazer na primeira infância, ela pode ser estabelecida antes que as crianças comecem a usar computadores e telefones celulares. Como inicialmente essas crianças estarão aprendendo a ler, há o gozo social de uma atividade conjunta, bem como os benefícios derivados da leitura por prazer. Uma vez estabelecida, é uma atividade agradável que, provavelmente, continuará ao longo da vida", afirma Barbara Sahakian, uma das responsáveis pela pesquisa.
Segundo a psicóloga infantil Isabel Santos, a tecnologia não necessariamente precisa ser um inimigo das crianças. O cuidado, segundo ela, está em priorizar um uso moderado. "Nos dias atuais, proibir o total acesso aos eletrônicos não é a solução. Porém, o uso da tecnologia deve ser feito com moderação e supervisão. Nessa dinâmica, o hábito da leitura pode ser inserido como alternativa ao uso de telas", sugere.
Raphael Moura Cardoso, professor do Departamento de Processos Psicológicos Básicos da Universidade de Brasília (UnB), reforça que o uso de smartphones, tablets e computadores antes de dormir afeta negativamente a qualidade do sono, e que esse tempo de tela pode ser substituído pelo hábito de leitura. "O sono é fundamental para uma vida saudável porque, além de descansar o corpo, ajuda na formação e no refinamento das conexões das células no cérebro, assim como na consolidação da memória e aprendizagem."
Limite
A pesquisa também indica que há limites para a leitura: ultrapassar as 12 horas semanais parece não resultar em benefícios adicionais. Na verdade, houve uma diminuição gradual na cognição, o que, segundo os cientistas, sugere que os jovens podem estar dedicando menos tempo a outras atividades que também podem enriquecer cognitivamente, incluindo esportes e atividades sociais.
"É fundamental que crianças também brinquem com outras crianças, que elas brinquem com seus pais. A leitura acima de 12 horas por semana poderia implicar em uma criança que fica mais sedentária, e, portanto, que não está dedicada a outras atividades, o que pode causar prejuízos para o seu desenvolvimento", afirma Thiago Blanco, psiquiatra da infância e adolescência.
Palavra de especialista: É preciso ter exemplos
"À medida que uma criança consegue acessar esses recursos, ela vai ter a oportunidade de amplificar a leitura como uma escolha. Outro ponto fundamental é a incorporação do hábito de leitura pela família. A criança reproduz muito o comportamento dos pais ou da figura de referência que ela convive. Então, se os pais usam o seu momento de lazer para se dedicar à leitura, de forma muito automática a criança poderá reproduzir esse comportamento. As crianças tendem a apresentar um tipo de aprendizado de modelação. Outro ponto é o reforço positivo. A medida que a criança lê, ela recebe incentivo em razão desse comportamento e tende a fazer cada vez mais. Quanto mais elogiada, quanto se celebra isso, mais se demonstra admiração por esse comportamento, maior é a chance de que a criança gaste mais tempo com essa atividade também."
Thiago Blanco, psiquiatra da infância e adolescência e doutor em psiquiatria e psicologia médica pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
*Estagiária sob a supervisão de Carmen Souza