Até o fim do século, mais de um quinto da humanidade estará exposta a temperaturas perigosamente altas — média de 29ºC ou acima dessa marca. As políticas climáticas atuais não devem atender as expectativas do Acordo de Paris, de 2015, e conduzem o mundo a um aquecimento de 2,7ºC, tendo como base o século 19. As previsões são de um modelo elaborado pelo Instituto de Sistemas Globais, da Universidade de Exeter, no Reino Unido, e da Universidade de Nanquim, na China. Publicado na revista Nature Sustaintability, o artigo destaca que, com essa elevação, 2 bilhões de pessoas, o equivalente a 22% da população mundial de 2070 (9,5 bilhões), enfrentará grandes desafios para sobreviver.
Segundo os pesquisadores, o Brasil será particularmente prejudicado, com a maior área terrestre exposta ao calor perigoso, no cenário de um aquecimento de 2,7ºC. Toda a região Norte, Mato Grosso, parte de Goiás, além de Maranhão, Piauí e Ceará serão afetados. Já com o limite de aumento de 1,5ºC, poucos municípios do Norte com densidade populacional de até 10 mil por 100km2 sofreriam os efeitos. Os demais estariam poupados.
Os autores do estudo utilizam uma métrica, nicho climático humano, definido como o habitat em que a humanidade prosperou. Pessoas que se encontram fora dessas fronteiras enfrentarão uma luta desigual para garantir a sobrevivência. Estudos anteriores demonstram que a meta do Acordo de Paris, de limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais até 2100 será praticamente impossível, diante das políticas climáticas atuais. Na semana passada, a Organização das Nações Unidas (ONU) alertou que ao menos um ano do próximo quinquênio ultrapassará essa marca.
Segundo os pesquisadores de Exeter e de Nanquim, ater-se à meta de 1,5ºC poderá reduzir a população exposta ao calor extremo de 22% para 5%, ou seja, mais de cinco vezes. Em comparação a um aumento de 2,7ºC, um sexto da humanidade estaria salva de temperaturas perigosas. "Para cada 0,1°C de aquecimento acima dos níveis atuais, cerca de 140 milhões de pessoas serão expostas a um calor perigoso. Isso revela tanto a escala do problema quanto a importância de uma ação decisiva para reduzir as emissões de carbono", destaca Tim Lenton, diretor do Instituto de Sistemas Globais da Universidade de Exeter.
Custos
O estudo também constatou que as emissões ao longo da vida de 3,5 cidadãos globais médios expõem uma pessoa, no futuro, ao calor perigoso. "Isso destaca a desigualdade da crise climática, pois essas futuras pessoas expostas ao calor viverão em lugares onde as emissões atuais são cerca de metade da média global", lembrou Lenton. "Os custos do aquecimento global são frequentemente expressos em termos financeiros, mas nosso estudo destaca o custo humano fenomenal de não enfrentar a emergência climática."
Para Tom Oliver, pesquisador ambiental da Universidade de Reading, no Reino Unido, que não participou do estudo, o artigo publicado na Nature Sustaintability indica que "estamos sentados sobre uma bomba-relógio ética". "O fato de que as populações mais vulneráveis, que também são menos responsáveis pelas emissões do aquecimento global, serão as que mais sofrerão, acrescenta um golpe moral. Os resultados deste estudo reforçam que o clima não respeita fronteiras nacionais. Somos uma população humana interconectada, afetada pelos impactos climáticos e este trabalho nos leva a pensar sobre como podemos responder como cidadãos globais."
Os autores explicam, no artigo, que, historicamente, a densidade populacional humana atingiu um pico em locais com temperatura média de cerca de 13°C, com ápice secundário em regiões onde os termômetros costumam marcar 27°C (climas de monção, especialmente no sul da Ásia). Da mesma forma, em cerca de 13ºC tem-se a maior produção agropecuária, sendo que é nesse limite que a riqueza de um país, medida pelo Produto Interno Bruto (PIB), atinge o auge.
Seca
Em temperaturas mais altas e mais baixas, a mortalidade aumenta, justificando, segundo os pesquisadores, o conceito de nicho climático humano. Embora menos de 1% da humanidade viva atualmente em locais de exposição perigosa ao calor, o estudo mostra que o aquecimento global já colocou 9% da população global (mais de 600 milhões de pessoas) fora dos limites ideais.
"A maioria dessas pessoas vivia perto do pico mais frio de 13°C do nicho e agora está no 'meio termo' entre os dois picos. Embora não sejam perigosamente quentes, essas condições tendem a ser muito mais secas e historicamente não sustentam populações humanas densas", escreveu, em nota, Chi Xu, coautor do estudo e pesquisador da Universidade de Nanquim.
Enquanto isso, a grande maioria das pessoas que serão deixadas de fora do nicho devido ao aquecimento futuro estará exposta a um calor perigoso, alega. "Tais temperaturas têm sido associadas a problemas como aumento da mortalidade, diminuição da produtividade do trabalho, diminuição do desempenho cognitivo, aprendizado prejudicado, resultados adversos da gravidez, diminuição do rendimento das colheitas, aumento de conflitos e disseminação de doenças infecciosas", observa Chi.
Embora alguns lugares mais frios possam se tornar mais habitáveis devido às mudanças climáticas, o crescimento populacional é projetado para ser maior em locais com risco de calor perigoso, especialmente na Índia e na Nigéria. "O que esse estudo mostra muito bem é o sofrimento humano direto que a mudança climática pode causar. Os autores não usam essa palavra (referem-se ao custo humano), mas viver fora do nicho significa sofrer devido a um clima insuportavelmente quente e possivelmente úmido", acredita Richard Klein, especialista em adaptação e risco climático internacional no Instituto Ambiental de Estocolmo, na Suécia.
Klein afirma que, tecnicamente, a adaptação é quase sempre possível — quando se tem recursos financeiros para tanto. "As pessoas podem passar a maior parte de suas vidas em prédios com ar-condicionado e importar seus alimentos de outros lugares, desde que tenham meios para isso. Para muitas das pessoas e países afetados, no entanto, isso não é uma opção. A questão, então, é o que essas pessoas farão. Mover-se para lugares mais frescos? Quais lugares eles são e que oportunidades eles terão lá? Isso pode levar a conflitos sobre recursos escassos?", questiona.