Estima-se que a Terra seja habitada por mais de 6 mil espécies, tão divergentes quanto a imensa baleia-azul, com seus 30m de comprimento, e o diminuto musaranho-pigmeu, que pesa menos de 2g e alcança, no máximo, 5cm em tamanho. Nesse grande grupo, também está, claro, o ser humano. O que faz de cada um tão particular, como a evolução nos últimos 100 milhões de anos os tornou únicos, e de que forma partes do genoma podem lançar luz sobre a saúde e as doenças são respostas que, agora, a ciência poderá responder.
Em uma colaboração internacional, cientistas de 50 instituições publicaram os resultados do Projeto Zoonomia, detalhando a diversidade genética de 240 espécies que representam mais de 80% das famílias de mamíferos. As descobertas foram descritas em 11 artigos na revista Science e têm aplicações que vão desde prever quais animais estão mais suscetíveis à extinção a descobrir qual o catalisador que, no cérebro, distanciou o homem dos parentes primatas. Em especial, a análise da evolução dos genes e de suas mutações ajudará a compreender doenças que ainda são um desafio na medicina.
A conclusão do trabalho veio mais de 20 anos depois do Projeto Genoma Humano, que desvendou o DNA do homem. Agora, com o sequenciamento e o mapeamento computacional das informações genéticas dos mamíferos, os cientistas identificaram regiões — às vezes, letras únicas do código, que são mais conservadas ou inalteradas — em espécies de mamíferos ao longo dos milhões de anos de evolução. "As mutações nessas regiões podem desempenhar um papel importante na origem de doenças ou nas características distintivas das espécies de mamíferos", explicou, em uma coletiva de imprensa on-line, Kerstin Lindblad-Toh, especializada em genética de mamíferos do Instituto Broad em Cambridge, nos Estados Unidos.
A hipótese compartilhada pelos pesquisadores é que, se uma posição no genoma foi preservada ao longo de 100 milhões de anos de evolução, provavelmente desempenha uma função em todos os mamíferos. Pela primeira vez, eles conseguiram testá-la em larga escala, disse Lindblad-Thoh. O levantamento e a comparação dos genomas permitiram identificar regiões do DNA do homem com função anteriormente não caracterizada. Trata-se de locais provavelmente regulatórios, importantes para o correto funcionamento do genoma.
Enquanto alguns genes evoluíram ao longo do tempo, outros permaneceram os mesmos durante todo o processo evolutivo dos mamíferos, explicou Patrick Sullivan, professor do Instituto Karolinska, na Suécia, e um dos autores da série de artigos. Esses últimos são chamados de "altamente restritos". Alguns deles, em humanos, são bastante semelhantes aos encontrados em ratos, cachorros, gatos e vacas em diversas regiões do genoma. São eles que unem todos esses animais como mamíferos. "Como esses genes passaram por uma prova de fogo ao longo da história evolutiva, essas regiões genéticas inalteradas devem desempenhar um papel fundamental na saúde e na composição genética do organismo", explicou Sullivan.
Segundo o professor, alguns genes altamente restritos podem produzir proteínas quase idênticas em humanos e em camundongos. "Isso é loucura, porque, provavelmente, temos 60 milhões de anos de evolução entre nós e o rato. E, no entanto, essa proteína não mudou. Então, inferimos que ela está fazendo algo realmente importante". No caso de alterações ou deleções em um desses blocos básicos do DNA dos mamíferos, as consequências para o organismo podem ser negativas. "Se um paciente tem um distúrbio cerebral neurológico ou certos distúrbios psiquiátricos, os pesquisadores são capazes de rastreá-lo e ver que essa pessoa recebeu um 'grande golpe' em um dos genes altamente restritos críticos para o sistema nervoso, a estrutura cerebral ou as sinapses", acredita Sullivan, que é psiquiatra e pesquisa a genética da saúde mental.
Extinção
"Esses 11 artigos são apenas uma amostra do tipo de ciência que pode ser feita com os novos dados genéticos", diz Beth Shapiro, professora de ecologia e biologia evolutiva da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. "Eles mostram a importância desses grandes consórcios e conjuntos de dados fundamentais", afirma Shapiro, que considera o projeto um "tesouro" e é coautora de dois trabalhos publicados na Science.
Um deles aborda, do ponto de vista da genética, o risco de extinção de espécies, indicando quais estão mais ameaçadas. Tradicionalmente, os conservacionistas contam minuciosamente quantos indivíduos existem em uma população e comparam a informação à disponibilidade do habitat desse grupo. Porém, para muitos mamíferos, não há dados suficientes sobre a população ou o ambiente em que vivem. "Então, nos perguntamos se seria possível estimar a ameaça de extinção simplesmente examinando os genomas das criaturas em busca de genes 'ruins'", diz.
Para responder à pergunta, os pesquisadores usaram a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, da União Internacional para a Conservação da Natureza, e classificaram o risco dos 240 mamíferos do Projeto Zoonomia. "As informações codificadas dentro de um único genoma podem fornecer uma avaliação de risco na ausência de dados adequados de censo ecológico ou populacional", relata Shapiro. "Não existem bons dados sobre números ou habitats para o rato-toupeira-cego das Montanhas da Alta Galileia, um pequeno roedor escavador de túneis, por exemplo. Mas seu genoma mostra que a espécie está indo bem, obrigado. Em contraste, os dados genômicos e ecológicos das orcas confirmam que as baleias-assassinas estão em sério perigo."