Recentemente, o diretor médico da farmacêutica Moderna, Paul Burton, comentou que uma série de vacinas terapêuticas contra diversos tipos de câncer, além de doenças cardíacas e condições autoimunes estarão disponíveis até o final da década (2030). Contudo, segundo ele, as primeiras doses podem ser aprovadas em cinco anos.
"Teremos essas vacinas e elas serão altamente eficazes e salvarão muitas centenas de milhares, senão milhões, de vidas. Acredito que seremos capazes de oferecer vacinas personalizadas contra o câncer, contra vários tipos de tumores diferentes, para pessoas em todo o mundo", comentou em entrevista ao jornal The Guardian.
Por meio do RNA mensageiro (RNAm), a tecnologia tem aberto novas portas no combate ao câncer e outras doenças. Um exemplo disso foi o desenvolvimento das vacinas contra a COVID-19, que contam com a mesma tecnologia.
"Teremos terapias baseadas em RNAm para doenças raras para as quais antes não havia medicamentos e acredito que daqui a 10 anos estaremos nos aproximando de um mundo onde você realmente pode identificar a causa genética de uma doença e, com relativa simplicidade, removê-la e repará-la usando a tecnologia baseada em RNAm", acrescenta o diretor médico da Moderna.
O cenário
Geralmente associado ao combate a vírus e bactérias, as vacinas voltaram aos holofotes durante a pandemia da COVID-19 e, agora, estão sendo discutidas e estudadas na oncologia. Recentes estudos mostram que elas podem revolucionar o combate a diversos tipos de câncer. Atualmente, 50 milhões de pessoas estão vivendo com câncer em todo o planeta, sendo esperados outros de 19 milhões de novos casos e um volume de mortes pela doença em torno de 10 milhões de pessoas ao ano, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
No Brasil, ao todo são esperados 704 mil diagnósticos da doença até o final de 2023 e 200 mil óbitos ao ano, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca).
As vacinas oncológicas ainda estão em fase de testes, mas alguns estudos mostrando a eficácia da técnica já animam os pesquisadores. Um deles foi publicado no início de janeiro pela revista Science Translational Medicine e mostrou sucesso no tratamento e prevenção do glioblastoma - um tipo agressivo de câncer cerebral, com altas taxas de letalidade. O princípio da vacina contra o câncer é o mesmo daqueles imunizantes conhecidos: utiliza-se um fragmento do tumor para que o sistema imunológico da pessoa crie um sistema de defesa, que ficará armazenado na memória das células. Assim, caso o mesmo tumor surja, o corpo estará pronto para combatê-lo.
Tratar o tumor com dois mecanismos de ataque
Bernardo Garicochea, oncologista do Grupo Oncoclínicas, explica que a grande inovação dessa forma de tratamento é a possibilidade de tratar o tumor com dois mecanismos de ataques simultâneos, e que são transportados por uma célula viva do próprio tumor. Isso só foi possível com o desenvolvimento de tecnologias que permitem aos cientistas mudarem o DNA das células e, com isso, a sua programação genética. "Inclusive, a vacina da COVID-19 que se utiliza de RNA e se demonstrou extremamente eficiente, abriu possibilidades para pensarmos em vacinas contra o câncer", comenta.
O oncologista destaca que as vacinas contra o câncer ainda estão em fases de testes. Isso porque, os tumores tendem a se comportar de forma mais complexa do que vírus e bactérias: "O câncer é um desafio pois, além de agir diferente depende de cada pessoa, é uma doença que sofre mutações o tempo todo. Então, você pode ter uma solução para um tipo de tumor, que atinge um grupo de pessoas, mas não para todos. Por isso, inclusive, percebemos que o futuro da oncologia está em tratamentos cada vez mais individualizados, tratando cada tipo de tumor como único", acrescenta.
Vacinas para tumores de ovário, pulmão e próstata
Pesquisadores britânicos iniciaram os testes da vacina OVM-200, criada pela Oxford Vacmedix - empresa desenvolvida por cientistas da Universidade de Oxford, no Reino Unido. O imunizante está sendo testado em pacientes com câncer de próstata, pulmão e ovário. Testada pela primeira vez em pessoas, a vacina contém a forma sintética da survivina, capaz de estimular respostas do sistema imunológico. O estudo está sendo realizado em 35 pacientes com câncer no University College Hospital, em Londres, e em outros quatro centros de pesquisa no Reino Unido.
“De modo geral, nosso sistema imunológico é ‘programado’ para destruir pequenos cânceres quando começam a se desenvolver. No entanto, as células cancerosas podem contornar a situação e permitir que a doença se espalhe, criando estratégias para evitar serem atacadas pelo organismo. Uma dessas táticas é a produção da survivina - proteína capaz de ajudar o câncer a se esconder do sistema imunológico”, sintetiza Bernardo Garicochea.
No organismo, a survivina combate a morte celular programada, aumenta a taxa de divisão da célula e também fica na superfície dela, impedindo que o sistema imunológico ataque a célula. "A survivina existe em todas as células humanas. Nas do câncer, é produzido mais survivina do que as normais, pois elas não querem morrer de jeito nenhum, querem viver o máximo que podem e se dividir o mais rápido possível", destaca o médico.
Para a vacina, os cientistas criaram uma proteína bastante semelhante à survivina, explica Bernardo. "Essa proteína é injetada no paciente e, justamente por ser apenas levemente diferente, o organismo começa a produzir anticorpos contra a survivina. Com isso, ela passa a atacar, por efeito colateral, a proteína que está nas células do câncer em grande quantidade. Já nas células normais, por apresentarem uma baixa quantidade de survivina, o sistema imunológico não se mostra interessado em destruí-las. Com isso, essa inibição que a survivina estava provocando vai começar a desaparecer e o sistema imunológico vai tirar o ‘freio de mão’ que estava puxado e passar a atacar as células do câncer".
Estudos com vacina para câncer de mama
A agência reguladora dos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA) aprovou o teste para uma vacina capaz de controlar o câncer de mama agressivo. A primeira fase do estudo irá contar com a participação de mulheres entre 18 e 24 anos que foram diagnosticadas com câncer de mama nos últimos três anos, em etapa inicial. Durante os testes, as participantes receberão três doses da vacina experimental, com um intervalo de duas semanas. Vale lembrar que a dosagem aumentará gradualmente.
A pesquisa, publicada na revista científica "Nature Communications", aponta que a vacina poderia ser eficaz na imunização de pacientes, sendo capaz de destruir as células cancerosas e também de criar memória imunológica, impedindo o ressurgimento do tumor. O desenvolvimento dessa nova alternativa de combate à doença teve 100% de sucesso em camundongos portadores de câncer de mama triplo negativo.
Novas frentes no combate ao câncer
Não é de agora e nem só com as tecnologias para desenvolvimento de vacinas terapêuticas que esse processo de "personalização" no tratamento oncológico vêm se mostrando mais eficaz. A imunoterapia, que cria, a partir da engenharia genética, uma série de medicamentos e procedimentos que utilizam o sistema imunológico do paciente para combater os tumores, têm avançado no combate ao câncer, pois quanto mais se conhece sobre a doença, mais se sabe que as células cancerosas, ou câncer humano, dependem basicamente que certos sistemas do organismo funcionem adequadamente.
"O que aprendemos é que esses sistemas - que são as proteínas que se ativam umas com as outras e levam um efeito final na célula - são redundantes. Isso significa que, às vezes, uma conversa com a outra. Então, imagine que a célula está vivendo um momento muito ruim na vida dela, porque a quantidade de oxigênio no meio não está boa. Ela precisa começar, em primeiro lugar, a economizar oxigênio, em segundo lugar evitar a formação de radicais livres, até que se comece a diminuir o metabolismo. Essa célula vai receber o sinal, que vem do meio ambiente, dizendo que tem pouco oxigênio e vai ativar uma série de proteínas, que vão seguir em cascata, até darem um sinal para o núcleo da célula, diminuindo a atividade metabólica”, diz Garicochea.
De modo geral, uma proteína pode ser usada tanto para um caminho, como para outro. Ou seja, a célula espertamente se utiliza de uma mesma proteína para várias coisas, conseguindo ser condutora de diversos efeitos. "É removido um material do tumor para o estudo do DNA das células ou delas propriamente ditas. Com isso, conseguimos definir o que há de errado na célula cancerosa e é possível bloquear o problema através dos medicamentos que estão surgindo", explica.
Quanto aos benefícios dos novos tratamentos, o oncologista comenta os principais pontos. "A toxicidade do tratamento é muito menor do que quando se usa quimioterapia ou radioterapia. Além disso, vale destacar também o aprendizado em se descobrir coisas novas, como os fatores de funcionamento das vias de sobrevivência da célula e entendimento do sistema imunológico. Isso vai fazer com que comecemos a tratar os distúrbios metabólicos das células. É esse o futuro que nos espera", finaliza Bernardo Garicochea.