Apenas três anos de exposição ao ar contaminado por partículas finas (PM2,5) são suficientes para favorecer o aparecimento de câncer de pulmão, mesmo em quem nunca fumou. Esse tipo de poluição é causado, principalmente, pela queima de combustíveis fósseis e pela atividade industrial. Um estudo publicado na revista Nature, que acompanhou 32.957 pacientes não tabagistas com mutação no gene EGFR, uma das mais comuns associadas à doença, mostrou que, nessas pessoas, o contaminante interage com a genética, elevando consideravelmente o risco do desenvolvimento do tumor.
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A associação do câncer de pulmão — o tipo que mais mata no mundo — com a poluição já foi estudada previamente, mas não era bem compreendida, explicou, em uma coletiva de imprensa on-line, Charles Swanton, líder do estudo e pesquisador do Instituto Francis Crick, na Inglaterra. Segundo o cientista, até hoje acreditava-se que agentes cancerígenos no meio ambiente danificavam o DNA, provocando mutações, e que, por isso, os tumores se desenvolviam.
Porém, o estudo, publicado na capa da revista Nature, mostrou que as partículas finas promovem a doença em pessoas saudáveis. Elas não apresentam danos no DNA, mas portam mutações que predispõem — e não necessariamente causam — o câncer de pulmão, como a EFGR. "Esse trabalho muda o paradigma de como surge o câncer", afirmou Swanton.
Os dados dos mais de 33 mil pacientes referem-se a moradores de quatro países — Inglaterra, Taiwan, Coreia do Sul e Canadá. Além disso, a equipe de Swanton usou dados de um grande banco de saúde do Reino Unido, o Biobank, com 407.509 participantes. Segundo o estudo, a análise dessas informações apoiou a associação entre níveis crescentes de PM2.5 e incidência aumentada de câncer de pulmão em pessoas com a mutação EFGR. No Canadá, os pesquisadores também observaram, em um levantamento que englobou 228 indivíduos com esse tipo de tumor, que, em três anos, o risco da doença era maior quando havia alta exposição ao poluente: 75% dos pacientes se encaixaram nessa categoria.
"A contaminação do ar mata milhões de indivíduos ao longo do ano, em todo o mundo. Cerca de 300 mil morrem, anualmente, de câncer de pulmão. Parte disso é gente que nunca foi fumante, mas que tem a mutação EGFR", explicou Swanton. Ele disse que, na Europa, cerca de 15% dos pacientes têm essa variante, chegando a 75% na Ásia. Não há dados da incidência da alteração genética em pessoas com câncer de pulmão no Brasil.
"É a primeira vez que se mostra que um composto cancerígeno pode promover o câncer sem causar mutações. Pensamos que isso é apenas o princípio. É muito possível que os outros 19 compostos cancerígenos detectados até agora gerem alterações por interrupção semelhantes", completa Swanton, que pretende, agora, estudar a associação do câncer com consumo de álcool e obesidade.
Inflamação
Segundo os cientistas, um estudo que eles realizaram como parte da pesquisa, em laboratório, demonstrou os mecanismos celulares associados à progressão do câncer quando há poluição atmosférica. A equipe descobriu que as partículas finas desencadeiam uma produção excessiva de células imunes, além de liberarem a interleucina-1, molécula que provoca a inflamação dos pulmões.
Em camundongos com a mutação EGFR, o bloqueio da interleucina durante a exposição à PM2.5 preveniu o desenvolvimento do tumor. O mesmo não foi observado quando os roedores portavam a variante KRAS, também frequente em pacientes da doença. Além disso, foi observado que um tipo de célula chamada AT2, presente nos alvéolos, é a que, provavelmente, inicia o câncer de pulmão quando há níveis altos de partículas finas.
"Em resumo, o estudo atual fornece fortes argumentos de que a exposição a PM2.5 no ar que respiramos pode promover o desenvolvimento de câncer de pulmão - embora em menor grau do que o consumo de cigarros", comenta Martin Göttlicher, diretor do Instituto de Toxicologia Molecular e Farmacologia de Munique, na Alemanha, que não participou da pesquisa. "Essa é a base do apelo dos autores para mais esforços para reduzir os poluentes atmosféricos nas áreas urbanas. No entanto, parece difícil imaginar tratar muitas pessoas preventivamente ao longo de anos ou décadas para prevenir a ocorrência dos casos", pondera.
Terry Tetley, professora de biologia das células pulmonares no Imperial College London, em Londres, classifica de "fascinante" o estudo. "Ele reúne dados clínicos em larga escala com ciência básica em modelos animais. Isso indica que a exposição ao PM2.5 pode induzir uma resposta inflamatória que, por sua vez, induz algumas células epiteliais pulmonares que carregam uma mutação genética a desencadear o crescimento do tumor não relacionado ao tabagismo", diz. "As descobertas indicam que, em pessoas com mutações do gene EGFR, após a inalação de pequenas partículas no ar, essas células são conduzidas por um caminho para uma rápida proliferação e formação de tumores."
Resultados convincentes
"A importância e o significado desse estudo residem não apenas em confirmar a associação entre poluição e desenvolvimento de tumores pulmonares com dados estatísticos confiáveis, mas também em ir além, investigando e elucidando os mecanismos envolvidos usando modelos animais. Em camundongos geneticamente modificados, os autores demonstram, de forma convincente, que partículas de poluição ambiental desencadeiam uma resposta inflamatória nos pulmões, mediada por células do sistema imunológico por uma molécula pró-inflamatória, responsável por estimular a proliferação de certas células do epitélio pulmonar (precisamente, aquelas com mutações EGFR). Eles também mostram que esses tipos de mutações se acumulam naturalmente com a idade e não são resultado de outros fatores ambientais, como tabagismo. Daí a importância de reduzir os níveis de poluição ambiental."
Victor Briz pesquisador do Centro de Biologia Molecular Severo Ochoa, na Espanha
Ligação com demência
A exposição a PM2,5 está ligada a um maior risco de demência, mesmo em níveis abaixo dos padrões de qualidade do ar em Estados Unidos, Reino Unido e Europa, segundo uma pesquisa publicada no The British Medical Journal. Dados mais limitados sugerem que o dióxido de nitrogênio e óxido de nitrogênio também podem favorecer o declínio neurocognitivo.
Os pesquisadores do Instituto Nacional Harvard Chan, nos EUA, usaram uma revisão de estudos e, após ajustar diversos fatores que poderiam interferir no resultado, constataram que uma maior exposição às partículas finas foi associada a um risco maior de declínio cognitivo.
Em 14 estudos que examinaram os efeitos potenciais do PM2,5 na demência, eles descobriram que, para cada aumento de 2 microgramas por metro cúbico na concentração média anual de PM2,5, o risco geral da condição elevava em 4%. Os pesquisadores ressaltam que as descobertas apoiam a importância para a saúde pública de limitar a exposição a partículas finas e outros poluentes atmosféricos.