Os mares são um verdadeiro acervo de substâncias com grande potencial biológico. Não à toa, cientistas de todo o mundo se dedicam a explorar o fundo dos oceanos em busca de avanços médicos. Há pesquisas em andamento para tratar doenças diversas, como cânceres, Parkinson e até a covid-19 (veja quadro). E a expectativa é de que, diante da vasta biodiversidade ainda inexplorada, surjam novos elementos promissores e eficazes aplicações clínicas.
É com essa motivação que atuam os pesquisadores do Grupo de Química Orgânica de Sistemas Biológicos do Instituto de Química de São Carlos (IQSC), da Universidade de São Paulo (USP). "Nosso objetivo é descobrir novos compostos químicos que apresentem atividades farmacológicas que sejam úteis no tratamento de diferentes doenças, como leishmaniose, infecções bacterianas e fúngicas, bem como algumas formas de câncer", afirma Roberto Berlinck, coordenador do grupo. Recentemente, a equipe descobriu que um fungo chamado Geomyces produz substâncias promissoras no combate a doenças causadas por parasitas, como malária e leishmaniose.
O também professor do IQSC explica que o fato de o ambiente marinho ser totalmente diferente do terrestre faz com que as espécies de animais, plantas e micro-organismos aquáticos desenvolvam capacidades distintas para se adaptar ao ambiente. "Uma das formas de adaptação é a produção e o acúmulo de substâncias químicas que servem como proteção contra predadores que causam doenças", ilustra.
Essas dinâmicas, acredita Berlinck, podem ser o caminho para o combate de ameaças a humanos. "Pesquisadores químicos, biólogos, farmacologistas e microbiologistas se empenharam em descobrir como essas substâncias químicas poderiam ser úteis para a humanidade, e, de fato, várias se mostraram úteis na forma de medicamentos, na indústria de cosméticos, como defensivo agrícola, na indústria de alimentos e até mesmo na recuperação de áreas ambientalmente degradadas", detalha.
Tumor resistente
Outra equipe brasileira, no Laboratório de Bioprospecção e Biotecnologia Marinha do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade Federal do Ceará (UFC), está à procura de compostos com ação antitumoral. "Procuramos moléculas com potencial anticâncer, seja causando morte das células tumorais, seja reduzindo a velocidade de crescimento do tumor", conta Diego Wilke, coordenador do grupo.
O pesquisador explica que os tumores investigados por eles são mais resistentes aos tratamentos disponíveis. Por isso, para aumentar as chances de sucesso no desenvolvimento de novos candidatos quimioterápicos, a equipe tem como aliado o próprio sistema imune. "Estamos realizando projetos para descobrir moléculas que induzam a morte de células tumorais de forma bem peculiar, causando também a ativação de uma resposta imunológica específica contra o tumor", afirma Wilke. "Essa estratégia, além de matar as células tumorais diretamente, permite que o sistema imune reconheça e também elimine as células cancerosas."
Na avaliação de Wilke, a ciência avançou muito no conhecimento de como o câncer burla o sistema imunológico. Ainda assim, apenas uma fração pequena, menos de 10% dos quimioterápicos, induz um tipo específico de morte celular que ativa o sistema imune, chamado morte celular imunogênica. "Embora seja raro, esse mecanismo de ação faz desse pequeno grupo de fármacos o mais utilizado no mundo por apresentar respostas melhores e mais duradouras", explica. "Dessa forma, temos investigado se as moléculas citotóxicas que identificamos são indutoras de morte celular imunogênica."
Descobertos os elementos promissores, a equipe optou por um projeto mais sustentável. As bactérias marinhas produtoras de substâncias bioativas são cultivadas no próprio laboratório. "Essa estratégia reduz vertiginosamente a quantidade de organismos marinhos coletados do seu ambiente e nos possibilita produzir os compostos com baixo custo e de forma controlada, assegurando o suprimento da quantidade necessária para o desenvolvimento dos estudos", diz Wilke.
Recentemente, o grupo descobriu uma classe de moléculas produzidas por uma bactéria marinha associada a uma espécie de coral. "Conseguimos identificar tanto alterações nas células tumorais que as tornaram imunogênicas quanto a ativação efetiva de resposta antitumoral do sistema imunológico", detalha o pesquisador da UFC. Tendo como foco o melanoma, um tipo de câncer de pele altamente agressivo e de difícil tratamento, os pesquisadores demonstraram que as células doentes expostas a essas moléculas tiveram o crescimento contido.
*Estagiária sob a supervisão de Carmen Souza