Ao voltar os olhos para o céu, muitas pessoas não têm ideia de que, além de estrelas, planetas e meteoros, o espaço está cheio de lixo. Assim como ocorre no solo terrestre e nos oceanos, a atividade humana polui a órbita com detritos que colocam em risco a segurança da Terra. Desde 1957, quando começou a corrida espacial, quase 11 mil toneladas de restos de naves e satélites artificiais foram acumulados, sem contar os mais de 100 milhões de objetos não rastreados (veja quadro). Com a futura expansão das incursões, especialmente no setor de telecomunicações, as expectativas são de que o problema se agrave.
A estimativa é de que os satélites em atividade saltem dos 9,7 mil de hoje para mais de 60 mil em 2030. Temendo que a situação se descontrole, como ocorreu com o acúmulo de plástico nos oceanos, os cientistas, agora, querem um tratado internacional que proteja a órbita da Terra. Recentemente, um grupo de especialistas em tecnologia e meio ambiente publicou, na revista Science, um apelo para que, inspirados pelo instrumento juridicamente vinculativo que deverá garantir a saúde dos mares após 20 anos de negociações, governos de todo o mundo olhem para cima.
"Passei a maior parte da minha carreira trabalhando no acúmulo de lixo plástico no ambiente marinho, os danos que podem trazer e as possíveis soluções. É muito claro que grande parte da poluição que vemos hoje poderia ter sido evitada. Quanto ao acúmulo de detritos no espaço, há muito que pode ser aprendido com os erros cometidos em nossos oceanos", destaca Richard Thompson, chefe da Unidade Internacional de Pesquisa de Lixo Marinho da Universidade de Plymouth, no Reino Unido, e um dos pesquisadores que assinam o artigo. No texto, o grupo sustenta que, sem medidas de impacto, "grandes partes dos arredores imediatos do nosso planeta correm o risco de ter o mesmo destino do alto-mar, onde a governança insubstancial levou a pesca predatória, destruição de habitat, exploração mineira e poluição plástica."
Os cientistas reconhecem os benefícios dos satélites artificiais e dizem que muitas indústrias começam a se preocupar com soluções sustentáveis na produção desses objetos. Porém, destacam que boa parte da órbita terrestre pode ser inutilizada com o avanço dos detritos artificiais. Até porque os próprios instrumentos lançados no espaço com diversos fins, desde meteorológicos a telecomunicações, podem ser prejudicados caso colidam com o lixo.
Segundo a Agência Espacial Europeia, mesmo fragmentos de 10cm podem provocar estragos, destruindo espaçonaves milionárias ou atingindo a Estação Espacial Internacional, que é tripulada. Isso já ocorreu. O supertelescópio Hubble, por exemplo, sofreu um dano a uma das antenas atribuído ao lixo espacial. Em 2019, o satélite militar chinês Yunhai foi destruído depois de colidir com um objeto com diâmetro estimado entre 10cm e 50cm.
Taxa de uso
Para Imogen Napper, pesquisadora da Universidade de Plymouth, líder do grupo de cientistas que publicou o artigo na Science, não há tempo a perder. "Com o acúmulo de detritos espaciais, estamos em uma situação semelhante à da poluição de oceanos. Considerando o que aprendemos em alto-mar, podemos evitar cometer os mesmos erros e trabalhar coletivamente para evitar uma tragédia no espaço. Sem um acordo global, poderemos nos encontrar em um caminho semelhante ao da poluição plástica", disse, em um comunicado. Para a especialista, um acordo internacional deve incluir medidas para responsabilizar dos fabricantes aos responsáveis pelo lançamento dos satélites a partir do momento em que chegam ao espaço.
Uma das possíveis soluções que devem constar de um acordo internacional é cobrar taxas de uso orbital das operadoras para cada satélite lançado, defende Mathew Burgess, pesquisador do Instituto Cooperativo de Pesquisa Ambiental da Universidade de Colorado, em Boulder, nos Estados Unidos. O economista é um dos autores de um artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (Pnas) no qual diz que essa é a maneira mais eficaz de resolver o problema do lixo espacial.
Para o pesquisador, a remoção de detritos espaciais pode motivar os operadores a lançarem mais satélites, aumentando ainda mais o lixo na órbita baixa da Terra (menos de 1,2 mil quilômetros) e, consequentemente, o risco de colisão. A cobrança de taxas estimularia as companhias a retirarem do espaço os instrumentos que não são mais necessários, acredita. O valor aumentaria com o tempo do objeto em órbita. No modelo dos especialistas da Universidade de Colorado, haveria um reajuste de 14% por ano-satélite, até 2040.
A preocupação com o acúmulo de lixo na órbita levou um grupo de pesquisadores da Universidade de Warwick, no Reino Unido, a criar um Centro de Conscientização do Domínio Espacial. A ideia é pensar estratégias sobre o uso sustentável do espaço, incluindo o desenvolvimento de métodos para rastrear os detritos. "A maior parte da sociedade moderna depende do espaço. Mas, agora, temos um problema de tráfego espacial. Mais cedo ou mais tarde, tudo isso se tornará um grande problema. Do nosso ponto de vista, a ideia é começar a pensar em soluções muito antes que isso aconteça", argumenta Don Pollacco, diretor do novo centro e professor do Departamento de Física.
Uma das preocupações, segundo Pollacco, é que pouco se sabe sobre a realidade do lixo espacial. "Não sabemos sobre a distribuição orbital, mas sabemos que existem algumas órbitas que contêm detritos significativos. São materiais que estão se movendo muito rápido, e mesmo algo muito pequeno pode derrubar uma espaçonave inteira."
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Ações urgentes
"Os satélites são vitais para a saúde de nosso povo, nossas economias, nossa segurança e a da própria Terra. No entanto, o uso do espaço para beneficiar as pessoas e o planeta está em risco. Ao comparar como tratamos nossos mares, podemos ser proativos antes de prejudicar o uso do espaço para as gerações futuras. A humanidade precisa assumir a responsabilidade por nossos comportamentos no espaço agora, não mais tarde. Encorajo todos os líderes a tomarem nota, reconhecerem a importância dessa questão e se tornarem conjuntamente responsáveis."
Melissa Thorpe, chefe do aeroporto espacial Spaceport Cornwall, na Inglaterra
O tamanho do problema
O tamanho do problema
Catalogados
– Lançamentos de foguetes desde o início da era espacial (1957), excluindo os que falharam: 6.380
– Satélites que esses foguetes colocaram na órbita da Terra: 15.430
– Satélites que ainda estão no espaço: 9.680
– Satélites no espaço ainda em funcionamento: 7.400
– Detritos rastreados regularmente pela Rede de Vigilância Espacial da Agência Espacial Europeia: 31.990
– Separações, explosões, colisões ou eventos anômalos resultando em fragmentação de material no espaço: 640
– Massa total de objetos espaciais na órbita da Terra: 10.700 toneladas
Estimados
Nem todos os objetos são rastreados e catalogados. Quantidade de detritos estimadas com base em modelos estatísticos:
– 36.500 objetos maiores que 10cm
– 100.0000 objetos de 1cm a 10cm
– 130 milhões de objetos de 1mm a 1cm
Fonte: Escritório de Detritos Espaciais da Agência Espacial Europeia (dados atualizados em dezembro de 2022)
Megaconstelações atrapalham observações astronômicas
As chamadas megaconstelações de satélites, como a Starlink da SpaceX, que reúnem um número imenso desses objetos para telecomunicação, se tornaram não apenas um potencial gerador de lixo espacial, mas estão provocando a poluição luminosa. Trata-se de uma séria ameaça para a astronomia, alega uma equipe liderada por John Barentine, pesquisador da Dark Sky Consulting, que publicou, recentemente, um artigo sobre o assunto na revista Nature Astronomy.
"Tememos que sinais astrofísicos fracos se percam cada vez mais no ruído devido a megaconstelações de satélites", escreveu a equipe. A busca por asteroides próximos da Terra (NEAs) potencialmente perigosos é uma possível vítima da quantidade desenfreada de satélites, alegam. "Esses objetos geralmente aparecem em nossos céus nas horas do crepúsculo, ao pôr do Sol e ao nascer do Sol, momentos em que satélites e detritos espaciais têm maior probabilidade de interferir nas observações."
Em 2021, um estudo publicado na revista da Royal Astronomical Society demonstrou que a luz acumulada refletida por todos os objetos espaciais grandes e pequenos tornou o céu noturno no zênite até 10% mais brilhante do que foi no início da era espacial, no fim dos anos 1950. Essa situação ocorre mesmo em lugares remotos, onde a poluição luminosa praticamente não existe, disseram os pesquisadores.
"A melhor medida para evitar isso é, sem dúvida, parar com o lançamento descontrolado dessas constelações de satélites na órbita baixa da Terra", comenta a astrônoma Olga Zamora, da Sociedade Astronômica Espanhola, que estuda o impacto das megaconstelações nas observações astronômicas. "O marco regulatório internacional sobre o uso do espaço sideral precisa ser alterado, tarefa que não parece fácil, apesar dos esforços que já foram feitos nesse sentido. A perda não é apenas para a astronomia, mas para a humanidade. Portanto, além de convocar os cientistas a se mobilizarem, outras ações devem ser implantadas para obter o apoio público." (PO)