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Agressividade de cães é moldada pelo contexto social em que estão inseridos

Estudo mostra que comportamento hostil de cães depende de características inatas e fatores ambientais, como a relação com o tutor

Fernanda Fonseca*
postado em 30/04/2023 06:00
 (crédito: SERGEI GAPON)
(crédito: SERGEI GAPON)

Mordidas, rosnadas e latidos. Mesmo que comuns entre cães, esses comportamentos podem trazer transtornos e até colocar em risco pessoas e outros animais. Para entender o que causa esse tipo de reação, um novo estudo publicado na revista Applied Animal Behaviour Science relacionou fatores morfológicos, ambientais e sociais com as manifestações de agressividade dos pets. Os resultados mostram que, para além das características físicas, o comportamento do animal é moldado pelo contexto em que ele está inserido.

Por meio de um cruzamento de dados, o estudo feito por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) com 665 cães de diferentes raças e vira-latas mostrou que, além de condições como tamanho e peso, a incidência de agressividade está associada à história de vida desses animais e às características do tutor. "O objetivo dessa pesquisa é tentar oferecer uma perspectiva nova para o estudo da agressividade canina. Existem vários outros fatores, inclusive genéticos, que podem afetar as características e o desenvolvimento comportamental de um cão", contextualiza Flávio Ayrosa, primeiro autor do artigo.

Fugindo da abordagem tradicional, que delimita a raça do cão a característica decisiva para o seu nível de hostilidade, os cientistas aplicaram questionários priorizando a descrição de outros fatores envolvidos na vida do animal, como aspectos morfológicos e a rotina com os tutores. A coleta de dados se deu por meio de três questionários on-line: dois deles, desenvolvidos pela equipe de pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), avaliaram informações gerais do animal e do tutor e a interação entre eles.

Por sua vez, o Canine Behavioral Assessment and Research Questionnaire (C-BARQ) foi traduzido e validado para o português e escolhido para avaliar o ambiente e a rotina canina, tendo como base domicílios urbanos. "O maior benefício desse questionário é a possibilidade de ter uma comparação com grandes amostras de cães do mundo todo e ver como essas diferenças têm uma raiz cultural e vão afetar o desenvolvimento dos animais", comenta Ayrosa.

A equipe também considerou, na análise, peso, altura, morfologia do crânio, sexo e idade dos animais. De acordo com os pesquisadores, essas particularidades possibilitam diferentes formas de interação entre o cão e o ambiente, o que resulta na expressão de comportamentos variados. "Você não tem uma tendência forte de um fator só. O que existe são perfis e características que estão sempre interagindo", reitera Ayrosa.

Entre os resultados, a equipe concluiu que o tamanho do animal é decisivo. "A altura afeta a percepção das pessoas e de outros cães sobre eles", afirma Ayrosa. "Em um cachorro grande, como o pitbull, rosnar é encarado de maneira diferente. Então, estudos mostram que, em um contexto urbano, cachorros maiores são mais adestrados para mostrarem menos esses sinais (de agressividade). Seria uma questão de como o tamanho do cachorro se traduz para o nosso contexto", detalha.

O peso, outro atributo, também influencia. À medida que o cachorro é mais pesado, por exemplo, ele se torna mais lento e menos reativo, o que influencia no seu grau de agressividade. O cruzamento dos dados evidenciou, ainda, que o risco de maior agressão dirigida ao tutor tende a ser maior entre os braquicefálicos (com focinho mais curto), em comparação aos mesocefálicos, cuja parte do corpo tem comprimento médio, considerando a proporção com a cabeça.

Passeios

Quanto ao comportamento e às características do tutor, a análise indicou que os cães que passeiam com mais frequência são considerados menos agressivos, e os que têm mulheres como tutor demonstraram um comportamento menos hostil, quando comparados aos tutorados por homens.

Para Eduardo Bessa, professor da Faculdade de Ciências da Vida e da Terra da Universidade de Brasília (UnB), campus Planaltina, o artigo mostra que os aspectos genéticos se complementam com questões ambientais, e que, a depender da criação, uma raça vista como dócil pode até se tornar agressiva. "Essa construção da agressividade e do comportamento como um todo é derivada de fatores como base genética, morfologia e tamanho, mas também por fatores ambientais, como criação, adestramento e até quantidade de passeios", afirma. "A interação entre esses fatores é o que gera o resultado comportamental."

O professor ressalta que, apesar da genética ser relevante, ela não é o único aspecto que vai determinar o comportamento de um cachorro. "Existe uma base genética que não é desprezível. Nós temos, sim, raças que foram selecionadas ao longo das gerações para serem mais agressivas, como é o caso do rottweiler e do dobermann", afirma. "Você tem um substrato genético de uma raça que é considerada muito agressiva, mas que, no ambiente certo de criação, pode desenvolver um comportamento diferente daquele que é esperado."

Ayrosa contribui com essa perspectiva afirmando que, quando uma pessoa escolhe determinada raça de cachorro, ela também cria expectativas por determinados comportamentos. Mas essas características, enfatizam, podem ser coibidas ou incentivadas. "Se você educar, qualquer cachorro pode se tornar agressivo ou qualquer cachorro pode se tornar menos agressivo", conclui.

*Estagiária sob a supervisão de Carmen Souza

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Estigma com os vira-latas

Fundado em 2005, a Associação Protetora dos Animais Abrigo Flora e Fauna é uma instituição sem fins lucrativos que acolhe cães e gatos vítimas de abandono e maus tratos.
Fundado em 2005, a Associação Protetora dos Animais Abrigo Flora e Fauna é uma instituição sem fins lucrativos que acolhe cães e gatos vítimas de abandono e maus tratos. (foto: Abrigo Flora e Fauna / Divulgação)

Apesar de haver um incentivo muito forte à adoção, cachorros sem raça costumam ser muito associados a comportamentos agressivos. A incerteza genética reforça esse estigma, segundo Flávio Ayrosa, da Universidade de São Paulo (USP). "As pessoas vão nesse argumento de que, como não há padrões, você não sabe qual tamanho o cão vai ficar e o comportamento que vai ter. Isso piora quando o animal tem um histórico de vida na rua", diz.

O cientista afirma que, por mais que possam existir tendências comportamentais ligadas a esses aspectos, a relação ainda é incerta, e o cruzamento dos dados feito na pesquisa não encontrou associações diretas entre agressividade e genética desses animais. "O papel do tutor é muito importante exatamente nesse sentido de que cachorros são como pessoas, cada um é um indivíduo. Então, o desenvolvimento deles é único", afirma Ayrosa.

No Abrigo Flora e Fauna, localizado no Gama e com mais 700 animais, diversos cachorros perdem a chance de serem adotados pela falta de conhecimento sobre a singularidade canina. Há um temor, por exemplo, de que os mais velhos não consigam se adaptar ou sejam mais agressivos, conta Orcileni de Carvalho, fundadora da instituição.

"As pessoas querem que eles (os animais) atendam às necessidades delas, mas temos que respeitar as limitações deles", afirma. "Se o cão tem um comportamento mais explosivo, ansioso ou depressivo, vai ser o amor que vai desfazer esse conflito. Se a pessoa estiver disposta a fazer a diferença na vida de um animal, ela tem que passar por esse esforço."

Ayrosa concorda que o ajuste na convivência depende de tempo. "O histórico de vida do animal, pensando em tudo o que ele passou ao longo da vida, é algo até mais determinístico que a genética", diz. "Muitos cachorros passam por traumas, e eles vão requerer um cuidado diferenciado. Então, no abrigo ou em casa, a pessoa que for cuidar desse cachorro terá que estar ciente dos gatilhos que ele possa apresentar."

Sem gritaria

Lara Soares Muniz, 26 anos, adotou sua cachorrinha em uma feira organizada pelo Abrigo Flora e Fauna. Ela conta que estava ciente de que seria necessário um esforço para garantir o bem-estar do animal. Mel, de 6 meses, tinha sido abandonada na rua com outros filhotes da ninhada.

"Ela estava muito assustada com tudo e tinha um semblante muito triste. Nos primeiros meses, até dava umas rosnadas, mas, depois de todo o processo de adaptação, é uma cachorrinha muito dócil", diz a tutora. "Aqui não tem gritaria, não tem estresse. Então, acredito que tudo isso ajudou para que a gente construísse um ambiente para que ela se adaptasse e se tornasse mais tranquila."

Segundo Ayrosa, nessa relação entre cão e tutor, não existe uma receita de bolo. Uma regra, porém, é certa: a necessidade de respeito. "Cachorros são indivíduos, estão nesse cenário de desenvolvimento com famílias e pessoas diferentes, e essas coisas vão moldando o bicho", diz. "Você não pode esperar que o comportamento de um cachorro seja uma coisa predefinida. Você pode adestrá-lo em uma tendência que queira que ela vá, mas, ao mesmo tempo, tem que se adaptar a ele e respeitá-lo." 

Animais não são passivos

 (crédito: UnB / Divulgação)
crédito: UnB / Divulgação

"Não existe isso de só aprendizagem ou só instinto, é sempre uma construção em que um complementa o outro. Se o seu cachorro apresenta um instinto agressivo, esse instinto pode ser coibido ou incentivado. Parece que o bicho é completamente passivo, mas isso também não é verdade. Nós estamos falando de um ser vivo, por mais que ele não tenha nosso nível de consciência e cognição, tem um nível de percepção do ambiente. Então, quando o tutor não determina tudo o que o bicho faz, ele mesmo vai alterar o ambiente ao seu redor."

Eduardo Bessa Pereira da Silva, professor da área de ciências da vida e da terra na Faculdade UnB Planaltina (FUP)

 

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