Mais de 192 milhões de animais são usados, anualmente, em laboratórios de todo o mundo para testes de produtos químicos, desde fragrâncias a analgésicos, segundo dados da Humane Society International (HSI). Como uma alternativa ao uso de cobaias para esses experimentos, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) avaliaram o desempenho de um modelo de pele artificial humana produzida em impressora 3D. Segundo os criadores, o material pode ser produzido em larga escala para avaliar irritações cutâneas por produtos químicos e cosméticos, além de ser uma alternativa a testes em seres vivos.
As peles artificiais são recriadas em laboratório a partir de células humanas que seriam descartadas. No modelo tradicional, isso se dá com o uso de pipetas, "pingando" as células. Com a nova solução, o material biológico é depositado pela máquina de bioimpressão até formar um tecido completo desejado. "As características têm a finalidade de mimetizar, da forma mais semelhante possível, a pele humana em sua estrutura e suas respostas biológicas frente a estímulos", afirma Julia Bagatin, primeira autora do estudo, publicado na revista Bioprinting.
A pesquisadora explica que a bioimpressora foi programada a partir de parâmetros como densidade e altura desejada do material biológico. Dessa forma, ela assume o papel da ação manual humana, depositando as células conforme o desenho predefinido para a construção da pele. "A automatização e a precisão na injeção dos materiais biológicos, além do controle do espaço na deposição de componentes funcionais na construção de estruturas 3D, fazem da impressão uma técnica poderosa na engenharia de tecidos", diz a também doutoranda do Departamento de Fisiopatologia e Toxicologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.
Bagatin lembra que, conforme a programação e o material escolhido, é possível, por meio da técnica da bioimpressão, produzir estruturas avançadas. "Isso leva sempre a sugerir que podem ser construídas peles in vitro mais complexas, tentando mimetizar cada vez mais a complexidade da pele humana", diz. "Esse material pode ser utilizado na pesquisa de doenças ou em testes de segurança e eficácia de produtos de consumo humano", indica.
O trabalho, que contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), foi conduzido com Denisse Esther Camarena, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. A dupla avalia que a técnica permite a produção em larga escala de pele humana artificial e a automatização do processo de reconstrução desse tecido por meio de uma metodologia precisa e confiável.
Para Taís Gratieri, professora e pesquisadora do Departamento de Farmácia da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB), o método de bioimpressão traz facilidades para a indústria de cosméticos e as farmacêuticas. Uma delas é que, como a impressora vai colocando as camadas das células para formar um tecido, o resultado tende a ser mais homogêneo, comparado ao processo tradicional, feito manualmente por humanos. "Então, a reprodutibilidade, a rapidez e a facilidade são vantagens", compara. "Na indústria, que faz muitos testes, ter essa bioimpressora também ocasiona uma redução de custos".
Controle de qualidade
A fim de avaliar o desempenho e a qualidade dos modelos da pele bioimpressa, as pesquisadoras seguiram diretrizes reconhecidas internacionalmente, como as indicadas nos guias da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). "Quando se fala que uma pele bioimpressa é representativa à pele humana, isso deve ser comprovado por meio de testes que avaliam a estrutura e a funcionalidade do mimético. Ou seja, a pele reconstruída deve apresentar as mesmas funções da humana", afirma Bagatin.
Márcia Guedes, médica dermatologista, esclarece que esse tecido humano é formado pela união de três camadas — epiderme, derme e hipoderme —, sendo que cada uma tem características próprias. "A principal função da epiderme é formar uma barreira protetora do corpo, protegendo contra danos externos e dificultando a saída de água e a entrada de substâncias e microorganismos", diz.
A derme, destaca a especialista, é a camada intermediária, responsável pela tonicidade, pela elasticidade de vasos sanguíneos e pelas terminações nervosas, recebendo estímulos do meio ambiente e os transmitindo ao cérebro através dos nervos. "Já a hipoderme une a epiderme e a derme ao resto do corpo", completa. Essa última também mantém a temperatura do corpo e acumula energia para o desempenho das funções biológicas.
Para assegurar a representatividade do material, inicialmente, a dupla de pesquisadoras se preocupou em reproduzir todas as camadas da pele no tecido mimético. "Além disso, verificamos se ele apresentava todas as proteínas estruturais que compõem a pele humana, como a queratina", ressaltam.
Após essa análise morfológica, partiu-se para o teste de funcionalidade. Foram aplicadas substâncias químicas na superfície da pele bioimpressa, o que gerou um processo irritativo somente em relação aos materiais considerados ácidos. "A resposta adequada a essas substâncias permite que os modelos de pele artificial, como a bioimpressa, possam ser usados para classificação do potencial de irritação", afirma Bagatin.
Embora os resultados sinalizem que o biomaterial pode ser utilizado como plataforma para o teste de irritação in vitro, Silvya Stuchi Maria-Engler, professora titular do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da FCF-USP, indica cautela. "As máquinas produzem os tecidos miméticos por dispersão celular, com o uso de agulhas ou ponteiras cônicas, e, dependendo do sistema escolhido, pode haver alteração da resposta celular frente ao teste de irritação in vitro", declara à agência Fapesp de notícias. Uma das possibilidades, sinaliza, é a geração de respostas alteradas, como uma maior inflamação.
*Estagiária sob a supervisão
de Carmen Souza
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