Alerta: esta reportagem contém imagens que podem ser consideradas perturbadoras por algumas pessoas
Além de casos graves de desnutrição, malária e quadros de verminoses, os indígenas ianomâmis, que passam hoje por uma crise humanitária de grandes proporções, sofrem com a disseminação da tungíase, infecção popularmente conhecida como "bicho de pé", que se torna um problema grave de saúde quando não há tratamento adequado.
As infecções são mais comuns em zonas pobres ou remotas, como as aldeias indígenas, comunidades rurais e favelas das metrópoles.
Entre as razões para maior disseminação nesses locais, de acordo com médicos entrevistados pela BBC News Brasil, está, principalmente, a maior exposição ao meio ambiente sem a proteção de roupas ou sapatos.
"Na terra indígena ianomâmis , especificamente, há também um desequilíbrio ambiental causado pelo garimpo, que torna as infestações mais propícias, e o fato de sistema imunológico dos indígenas estar prejudicado pela desnutrição e outros quadros", afirma Carla Rodrigues, médica do grupo de saúde indígena da SBFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade) que atuou em comunidades yanomami entre maio de 2021 e fevereiro de 2022.
Dados divulgados pela Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) estimam que, apenas na Região das Américas, mais de 20 milhões de pessoas estejam em risco de serem infectadas - particularmente, crianças, pessoas com deficiência e idosos.
"Nos indígenas ianomâmi, a tungíase tem causado múltiplas lesões dolorosas, além de 'abrir portas' para outras infecções e, em casos mais graves, faz até com que alguns percam pedaços dos membros", explica Bruna Abilio, médica pediatra voluntária da Associação Médicos da Floresta e parte do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein.
"Isso causa, muitas vezes, problemas para caminhar e dificulta que os indígenas mantenham seu potencial produtivo de caça e cuidados da roça."
O que é a tungíase e como é transmitida?
A doença é causada por fêmeas do parasita Tunga penetrans, que gosta de ambientes secos e solos arenosos, e se alimenta do sangue de humanos e de animais.
Ele entra na pele por qualquer parte do corpo que está em contato com o chão - principalmente pés, mãos e nádegas - causando, como primeiros sinais, irritação e coceira.
Uma vez dentro do corpo, o parasita, se não for retirado a tempo, coloca seus ovos na pele, e a infecção se alastra.
"Quando a fêmea está grávida, ela usa sua cabeça pontiaguda para penetrar na pele do hospedeiro e ali maturar seus ovos até que eles estejam prontos para eclodir. A partir daí, são expelidos no ambiente", aponta Carla Sássi, médica veterinária do Grad (Grupo de Resgate de Animais em Desastre).
Sássi explica que, durante sete a 10 dias, o parasita pode deixar até 200 ovos no ambiente, e após três semanas, essas larvas já estão maduras o suficiente para acasalar, iniciando o ciclo de infestação novamente.
Como a tungíase se manifesta
As lesões causadas pela tungíase podem ser únicas ou bastante numerosas, dependendo da infestação do solo.
A princípio, a infecção se manifesta como uma pequena pequena marca marrom escura com um círculo fino e claro ao seu redor.
Se as lesões são múltiplas e a inflamação local se torna intensa, o acometido pode ter infecção bacteriana secundária e ter sua mobilidade reduzida.
"O risco de infecções bacterianas secundárias é especialmente alta se a pessoa tenta tirar a lesão sem conhecimento técnico de como removê-la completamente, e sem material estéril - há, inclusive, risco de tétano", Igor Queiroz, infectologista do Rio Grande do Norte consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Animais também são afetados
Assim como os seres humanos, os animais também podem ser parasitados e sofrem com sintomas similares.
"Neles, o bicho de pé também causa muita coceira e ardência, e assim como em humanos, pode virar uma infecção realmente grave, com risco de perda do coxim, aquela parte macia na pata. Em pessoas, observamos [nas comunidades] casos gravíssimos que provocam a perda de membro", aponta Carla Sássi, médica veterinária do Grad.
"A ocorrência da tungíase no território yanomami é um bom exemplo do que chamamos de tríade na saúde única, que é a relação da saúde humana, animal e ambiental. Não adianta tratar cada um desses separadamente - apenas tratando os três ao mesmo tempo por um período de médio a longo prazo é que é possível conseguir resultados no controle dessa zoonose", complementa Sássi.
Em um dos posts recentes no Instagram do Grad, a veterinária faz um apelo por transporte para Boa Vista, capital de Roraima, para um jovem desnutrido de 20 anos que sofre com tungíase há uma década e está com os pés em estado grave, sem possibilidade de se movimentar bem.
No vídeo, a veterinária conta que o rapaz sofre de depressão e que seus pais imploram por ajuda.
Casos graves requerem tratamentos mais complexos
Casos como o citado acima não são considerados comuns porque são necessários muitos anos de falta de assistência médica adequada para que cheguem a um estado tão grave.
Nas comunidades yanomami, no entanto, profissionais com quem a reportagem conversou afirmam que são muitos os quadros preocupantes.
"Amputações por tungíase são consideradas muito raras, e o fato de isso estar acontecendo é um sinal do quão longe o problema foi. Quadros tão graves certamente contam com infecções secundárias", aponta Paulo Machado, coordenador do Departamento de doenças infecto parasitárias da SBD.
Machado aponta que, constatada a presença de outras infecções, o uso de antibiótico, medicamento que não esteve amplamente disponível nas comunidades yanomami nos últimos anos, é necessário.
"Às vezes é usada também a ivermectina [droga usada no tratamento de vários tipos de infestações por parasitas], mas nem sempre é suficiente", complementa Igor Queiroz.
Por serem infestados continuamente, podendo chegar a ter centenas de tungas no corpo, os moradores dessas áreas muitas não se beneficiam do método tradicional de retirada do parasita por uma pequena incisão cirúrgica.
"No contexto urbano, o médico remove e pronto, o problema acaba. Como o território ianomâmi é muito grande e nas áreas de garimpo não têm postos de saúde fixos, os indígenas ficavam desassistidos", afirma Carla Rodrigues, médica do grupo de saúde indígena da SBFC.
"Ali, as crianças, por estarem tão debilitadas e desnutridas, têm lesões que crescem tanto que formam grandes tumores. Há, inclusive, casos de lesões enormes na região perianal, que impedem essas pessoas de sentar. É necessária uma cirurgia mais complexa, mas isso muitas vezes não é feito. É o bicho de pé que causa a morte."
A médica conta que, durante seu período atendendo as comunidades, buscou mitigar o problema com uma solução chamada Nyda, à base de dimeticona.
"A aplicação deve ser feita três vezes a cada 10 a 15 minutos. A pulga fica sem oxigênio e morre. O produto funciona, mas não está amplamente disponível."
O medicamento não está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) e entra no país por meio de doações de instituições como a Opas.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64455894
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