Em todo o mundo, a deficiência visual acomete pelo menos 2,2 bilhões de pessoas, e uma parte significativa desses indivíduos sofre de cegueira congênita, processo que acontece antes ou durante o nascimento. O impacto dessa condição sobre os sistemas sensoriais e neurológicos tem sido foco de estudo nos últimos anos, com pesquisadores buscando compreender como o cérebro se articula a partir da ausência de estímulos visuais. Agora, um novo estudo brasileiro desvendou o fenômeno da plasticidade cerebral em pessoas que nasceram sem a visão, demonstrando como estímulos não visuais atingem a parte do cérebro responsável pelo sentido ausente e ajudam o órgão a se adaptar.
A plasticidade cerebral é definida pela capacidade do cérebro em se reorganizar e rearranjar as conexões entre os neurônios, que são as células responsáveis por gerar e transmitir os impulsos nervosos, explica Pedro Sudbrack, médico pela Universidade de Brasília (UnB) e com residência em neurologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Essa reorganização ocorre, normalmente, ao longo de toda a vida do indivíduo, sendo mais intensa no período fetal e na primeira infância", diz. "A exposição a tipos específicos de estímulos presentes no meio ambiente é fundamental para o desenvolvimento dos circuitos cerebrais responsáveis pelo processamento e pela percepção daquela modalidade de estímulo", completa.
Na pesquisa publicada na revista científica Human Brain Mapping, a equipe utilizou imagens de ressonância magnética para analisar a possibilidade de conexões alternativas cerebrais em pessoas nascidas sem a visão. As imagens neurais de 10 indivíduos com cegueira congênita e leitores de braile foram comparadas com as de um grupo controle, composto por 10 pessoas sem deficiência visual. Os cientistas do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino (Idor), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Oftalmologia Especializada, onde, constataram a existência de mudanças estruturais de conectividade no tálamo, região que atua na retransmissão de informações para os principais sistemas sensitivos.
Fernanda Tovar-Moll, coordenadora do estudo e presidente do Idor, explica que a plasticidade tem sido foco de pesquisas do grupo há muitos anos, e que o estudo atual possibilitou analisar sua relação com a cegueira congênita. "Nesse caso de plasticidade cruzada em cegos congênitos, em que áreas distantes do cérebro apresentam essa comunicação, suspeitamos que o fenômeno estaria se originando no tálamo, pois é a estrutura cerebral que conecta diversas regiões corticais distantes entre si", afirma, em nota.
O grupo observou que a área do tálamo dedicada às conexões com o córtex occipital, responsável pela visão, era menor e mais fraca nos indivíduos que não enxergavam, dando lugar para conexões com o córtex temporal (audição), que se mostraram mais fortalecidas do que em indivíduos sem deficiência. "As conexões entre os neurônios que são ativadas com maior frequência tendem a se fortalecer, enquanto aquelas pouco utilizadas tendem a ficar mais fracas", comenta Sudbrack. "Isso pode sugerir que regiões do tálamo relacionadas com a visão são invadidas por conexões que refinam outros sentidos, como a audição."
Funcional
Natanael de Abreu Sousa, especialista em estrabismo e neuroftalmologia do Hospital Oftalmológico de Brasília (HOB), explica que o tálamo tem grande importância funcional, já que é uma condensação de neurônios localizada no centro do cérebro. "Fibras do nervo óptico de cada olho se conectam na parte póstero lateral do tálamo. Não são só as fibras da visão, mas todos os outros órgãos dos sentidos, com fibras que trazem informação de calor, temperatura, tato, de noção de cada parte do corpo, o que nós chamamos de propriocepção", diz. "Com relação à audição, existe um nervo auditivo que leva informação até o tálamo e, de lá, para o córtex, permitindo interpretar aquilo que a gente escuta na forma de sons, música e palavras."
Pesquisas anteriores haviam demonstrado que pessoas com cegueira congênita são capazes de ativar a região do cérebro responsável pela visão por meio de estímulos não visuais, como a leitura em braile. Mas foi a primeira vez que um estudo descreveu as conectividades alternativas do tálamo com os córtices ligados à visão e à audição. "Isso mostra a importância de outras portas de entrada sensoriais para compensar aquilo que está carente", comenta Natanael de Abreu. "Tudo chega ao tálamo, onde é processado, estimulando diversos cortices. Mas também, de forma cruzada, poderia estimular o occipital, que não ficaria inerte por falta absoluta de visão em uma criança com cegueira congênita".