Tutores de animais domésticos sempre afirmaram que os melhores amigos conseguem compreendê-los. A ciência, agora, está certa disso. Uma revisão da literatura científica publicada na edição especial da revista Evolutionary Human Sciences, editada pela Universidade de Cambridge, indica que cachorros têm a habilidade de reconhecer os estados emocionais de humanos e responder adequadamente, garantindo o sucesso da interação no grupo em que vive. Essa capacidade teria sido moldada ao longo da coexistência das espécies, estimada em pelo menos 10 mil anos.
Segundo o artigo, na história evolutiva compartilhada, os cães podem ter sido selecionados, de forma não intencional, para lidar com as complexidades das relações sociais formadas por espécies diferentes. Os animais teriam desenvolvido diversos mecanismos para facilitar a interação com humanos, e ler as emoções é um deles.
"Sabemos que, no período de domesticação, estabeleceu-se uma relação de cooperação entre cães e seres humanos e um vínculo afetivo muito significativo para ambos", afirma Carine Savalli Redigolo, professora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e líder do Laboratório de Etologia Canina da instituição. "É plausível presumir que o sucesso dessa relação tenha sido o resultado de uma comunicação elaborada e da habilidade de perceber e reagir adequadamente às emoções um do outro", destaca a pesquisadora.
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"É importante pensarmos nas vantagens que cada indivíduo cachorro vai ter ao perceber os estados emocionais dos humanos e responder adequadamente", ressalta Briseida Resende, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e coautora do artigo. "Se o cão vive próximo a humanos e pode maximizar o que consegue de recursos para viver (comida, abrigo, por exemplo) percebendo os estados emocionais e respondendo de forma que o humano vai recompensá-lo, ele terá como vantagem o aumento de recursos e, consequentemente, aumento de suas chances de sobrevivência", explica a pesquisadora das relações entre homens e animais.
A professora da USP destaca, porém, que isso não significa que os cães conseguem atribuir estados mentais aos seres humanos. "É uma resposta embasada na sua história de aprendizagem, a partir dos seus recursos fisiológicos", ressalta.
Fisiológico
No artigo, Briseida Resende e Natalia Albuquerque, bióloga e doutora em comportamento animal, respectivamente, afirmam que, embora recente, o estudo da percepção de emoções em espécies não primatas está em alta. "Eles (os animais) discriminam e mostram respostas diferenciadas a pistas emocionais expressas por meio de posturas corporais, expressões faciais, vocalizações e odores, e pistas emocionais podem influenciar seu comportamento. "Nos nossos estudos, descobrimos que os cães não somente reconhecem nossas emoções, mas eles também conseguem inferir se estamos felizes ou com raiva, e quais são as consequências disso", complementa Natalia Albuquerque.
Tutora da yorkshire Nina, a servidora Sueli Assis, 41 anos, não tem dúvidas de que a cachorrinha de 5 consegue compreendê-la. "Eu acredito que os cães podem se envolver emocionalmente com tutores, porque eles são seres sensíveis às emoções que os cercam", diz. Ela conta que, no fim do ano passado, precisou ficar de repouso por alguns dias, e a yorkshire imediatamente mudou o comportamento. "Nina ficou sempre do lado da cama, sentimos que ela também ficou mais quieta naqueles dias, como se entendesse que o momento era de repouso e sem agitação."
O artigo das pesquisadoras da USP destaca que estudos sugerem que a habilidade de reconhecer e responder a emoções não é exclusiva dos cães domésticos. Os que vivem nas ruas — estima-se que 80% da população mundial de cachorros esteja nessa situação — também têm essa capacidade. Na Índia, o Instituto Indiano de Educação e Pesquisa em Ciências realiza estudos sobre o comportamento canino e a interação social com humanos. Um deles identificou que os vira-latas avaliam a intenção das pessoas — se amigáveis ou ameaçadoras — em um teste de fornecimento de alimentos.
"Conseguir ler as emoções dos outros ajuda a decidir com quem se quer interagir, com quem se quer dividir a comida, de quem se quer se aproximar e sobre quem não está disponível para si", resume Natalia Albuquerque. "Certamente, ao longo do período evolutivo compartilhado entre cães e pessoas, essas habilidades foram críticas para a aproximação das duas espécies, para o estabelecimento de laços e para a manutenção dos relacionamentos. Hoje em dia, dividimos nossas vidas com animais sintonizados a nós, que podem nos compreender."
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Muito além de um petisco
Nos mais de 10 mil anos de convivência, reconhecer emoções básicas e saber responder adequadamente a elas conferiu aos cães uma vantagem crítica para estabelecer e manter laços com o Homo sapiens, diz a bióloga Natalia de Souza Albuquerque, pesquisadora da Universidade de São Paulo, com mestrado, doutorado e pós-doutorado no Instituto de Psicologia da USP. Autora de dezenas de artigos sobre comportamento animal e coautora de um livro sobre cognição canina, publicado em 2017, a cientista explica que as reações dos animais frente aos estados emocionais humanos ajuda a ajustar o próprio comportamento de forma adequada.(PO)
Até onde se sabe, a habilidade de reconhecer estados emocionais de humanos e responder adequadamente a eles é uma exclusividade dos cães?
Cães vão muito além de associar uma face alegre a um petisco e uma face raivosa a uma bronca. Eles conseguem reconhecer as expressões emocionais de humanos, sendo capazes de integrar a informação que passamos por meio da nossa face e da nossa voz. Mas, ao contrário do que muitas pessoas podem achar, essa não é uma habilidade exclusiva do nosso melhor amigo; atualmente, sabemos que cavalos e gatos que vivem com pessoas também são sensíveis às nossas emoções e podem reconhecer o conteúdo emocional das nossas expressões faciais e acústicas, em situações positivas e negativas. Ainda não sabemos se outros animais não-humanos têm essa habilidade, mas as cabras já mostraram que conseguem discriminar uma face sorridente de uma face brava, o que é um pré-requisito para habilidades mais complexas como a de reconhecimento.
Essa habilidade é compartilhada por cachorros que vivem nas ruas ou é vista apenas naqueles de ambiente doméstico?
Acreditamos que essa habilidade seja não apenas de alguns indivíduos, mas de todos da espécie. Apesar da grande diversidade de formas, tamanhos, cores e funções, todos os cães pertencem a uma única espécie: Canis familiaris. Ainda estamos engatinhando no que se refere ao nosso conhecimento sobre cães que vivem nas ruas. De fato, trabalhar com esses animais é uma tarefa complexa e complicada. Apesar disso, alguns grupos de pesquisa no mundo têm feito trabalhos muito importantes com animais que vivem nas ruas, mostrando que esses cães têm várias das habilidades demonstradas para cães domiciliados. É uma questão de tempo até descobrirmos mais sobre suas habilidades.
Aparentemente, os cães compreendem e respondem a todos os estados emocionais, mesmo os mais complexos?
Quando falamos em emoções, precisamos pensar em dois grandes grupos: as primárias e as secundárias. As primárias consistem nas seis emoções básicas (alegria, raiva, medo, tristeza, nojo e surpresa) e as secundárias são chamadas autoconscientes (vergonha, ciúme, culpa, entre outras). Até hoje, os estudos de percepção de emoções em cães foram feitos com as emoções básicas, por isso sabemos que conseguem reconhecer e inferir estados emocionais de alegria e de raiva e são sensíveis às expressões de tristeza. Para as outras, resta ainda uma grande interrogação.
Quais as principais vantagens evolutivas que os cães obtêm com essa habilidade?
Expressar emoções possibilita transmitir informações sobre como estou me sentindo, sobre quais são as minhas motivações e minhas intenções. Por outro lado, perceber emoções possibilita obter informações sobre como o outro está se sentindo, sobre o que ele deseja e até sobre o que ele está prestes a fazer. Obter essas informações faz com que eu seja capaz de prever o comportamento do outro e de ajustar o meu próprio.
Quebra-cabeça evolutivo
Na prestigiada revista científica Evolutionary Human Sciences, Natalia Albuquerque e Briseida Resende fazem a conexão entre os resultados observados até o momento nesta área de pesquisa que foca na interação entre o ser humano e o cão. De acordo com a análise das autoras, o acumulado de evidências desses estudos comprova que os cães são capazes de ler as emoções humanas e usar esta informação de maneira funcional, ou seja, eles ajustam os seus próprios comportamentos e reagem adequadamente dependendo da emoção que o ser humano está expressando (ex.: alegria, raiva, tristeza). Esse artigo avança na compreensão da relação entre o ser humano e o cão, sistematizando e concatenando as informações obtidas nos estudos recentes e discutindo os resultados em conjunto sob a lente de uma perspectiva evolutiva. É essencial compreender o valor adaptativo de um comportamento, ou seja, como o comportamento pode garantir ao indivíduo os recursos necessários para sua sobrevivência no ambiente em que ele habita. O artigo faz essas conexões e junta as peças de um quebra-cabeça evolutivo, ampliando assim nosso conhecimento sobre essa relação tão importante tanto para o ser humano quanto para o cão.
Carine Savalli Redigolo, professora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e líder do Laboratório de Etologia Canina da instituição.