Por muitas décadas, prevaleceu a crença, na ciência, de que cérebro e sistema imunológico eram desconectados. Como é protegido pela barreira hematoencefálica — um revestimento dos vasos sanguíneos que seleciona o que pode entrar—, o órgão estaria blindado das reações — muitas vezes caóticas — das células que protegem o organismo contra infecções. Mas isso ficou para trás.
Especialmente na última década, houve uma explosão de pesquisas que investigaram a relação entre o sistema nervoso e o imune. Apenas em 2021, 10 mil artigos foram publicados sobre o tema, contra 2 mil em 2010, segundo um levantamento da revista científica Nature. Esses trabalhos buscam respostas para uma conclusão à qual, empiricamente, muitos médicos já haviam chegado: enfermidades mentais e distúrbios imunológicos estão intimamente ligados.
Não que as portas do cérebro estejam abertas para as estruturas de defesa e suas armas de ataque, como as citocinas e outras proteínas secretadas para proteger o organismo de invasores. A barreira hematoencefálica é, de fato, seletiva. Mas não da forma como se acreditava.
Além disso, já se sabe que existem células de defesa próprias do órgão, como linfócitos e microglias (os macrófagos cerebrais). "A interação entre o cérebro e o sistema imunológico existe e é constante", afirma Kiavash Movahedi, neuroimunologista da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, que, recentemente, publicou um artigo na revista Immunology detalhando como diversas estruturas defensivas são recrutadas pelo sistema nervoso para combater infecções cerebrais.
Com o conhecimento mais aprimorado dessa relação — que, porém, ainda não foi totalmente desvendada —, estudos começam a mostrar que condições como ansiedade, demências, transtorno bipolar e esquizofrenia, entre outros, têm um componente imunológico. O papel da inflamação na depressão, particularmente, tem sido bem estudado: o risco da doença é alto em diabetes, problemas cardiovasculares, síndrome metabólica, infecções e enfermidades autoimunes — todas elas com componentes inflamatórios.
É uma relação complexa e de mão dupla, acredita a psiquiatra e doutora em imunologia Klæbo Reitan, da Universidade Norueguesa de Saúde e Tecnologia. "Sabemos que pessoas com transtornos mentais também são mais suscetíveis a várias inflamações no corpo e a distúrbios do sistema imunológico. Isso indica que existe uma interação", diz a médica, integrante de um projeto de pesquisa criado em 2019 que aborda a conexão entre psicoses e células de defesa. "O oposto também é verdadeiro. Sabemos que pessoas que foram sujeitadas a abuso ou negligência na infância são mais suscetíveis a várias doenças do sistema imunológico", complementa.
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Citocinas
O interesse do grupo de pesquisa que Reitan participa é testar se medicamentos corticosteroides, que regulam o sistema imunológico, poderiam ajudar no tratamento de psicoses e outros distúrbios mentais. Esses remédios, como a substância prednisona, controlam a produção de substâncias que, em excesso, em vez de ajudar o organismo, se voltam contra ele. É o caso das citocinas, famosas durante a pandemia de covid-19. Quando superestimulados por um agente infeccioso, linfócitos, macrófagos e outros soldados do corpo secretam de forma descontrolada essas proteínas. No caso da infecção por Sars-Cov-2, a chamada "tempestade de citocinas" produz danos pulmonares potencialmente letais.
Nos transtornos neuropsiquiátricos, as citocinas afetam o metabolismo de neurotransmissores, como serotonina, dopamina e glutamato. Produzidas naturalmente pelo cérebro, essas substâncias estão associadas ao controle das emoções. As proteínas liberadas pelo sistema imunológico podem afetá-las de diversas maneiras, segundo um artigo das universidades norte-americanas de Emory e Arizona, publicado na revista Depress Anxiety.
"Por meio de seus efeitos nos sistemas de neurotransmissores, as citocinas afetam os neurocircuitos no cérebro (...), levando a mudanças significativas na atividade motora e motivação, bem como ansiedade, excitação e alarme", diz o artigo. "No contexto do desafio ambiental do mundo microbiano, esses efeitos das citocinas inflamatórias no cérebro representam um conjunto orquestrado de respostas comportamentais e imunes que atendem às prioridades evolucionárias para desviar os recursos metabólicos para combaterem infecções e cicatrização de feridas."
Ou seja, a intenção é boa, mas o efeito pode ter implicações negativas no comportamento. "O sistema imunológico e o cérebro, provavelmente, evoluíram juntos", destaca o biomédico brasileiro Kalil Alves de Lima, pesquisador da Universidade de Washington, onde desenvolveu um modelo de camundongo para pesquisas sobre a interação. "Selecionar moléculas especiais para nos proteger imunológica e comportamentalmente ao mesmo tempo é uma maneira inteligente de proteger contra infecções. Esse é um bom exemplo de como as citocinas, que basicamente evoluíram para combater patógenos, também atuam no cérebro e modulam o comportamento", explica.
No estudo de Alves de Lima, publicado na revista Nature Immunology, os pesquisadores injetaram, nos animais, uma substância produzida por bactérias que provoca uma forte resposta imune. Eles notaram que, em seguida, células de defesa chamadas T gama-delta localizadas nos tecidos ao redor dos cérebros das cobaias produziram mais uma molécula, a IL-17, que é absorvida pelos neurônios. Em abundância, ela provocou um comportamento semelhante ao da ansiedade.
Quando os animais foram tratados com antibióticos, porém, a quantidade de IL-17 foi reduzida. Isso sugere que as células T gama-delta podem detectar a presença de bactérias normais, como aquelas que compõem o microbioma intestinal, bem como espécies invasoras, e responder adequadamente para regular o comportamento. "O aumento do estado de alerta e vigilância pode ajudar os roedores a sobreviver a uma infecção, desencorajando comportamentos que aumentam o risco de novas infecções ou predação enquanto estão enfraquecidos", diz Alves de Lima.