Uma façanha detalhada, ontem, por pesquisadores americanos poderá revolucionar a produção de energia na Terra. Pela primeira vez, cientistas conseguiram, por meio de um processo de fusão nuclear, gerar mais energia do que a utilizada para realizar o procedimento. O resultado abre um novo caminho para a produção de energia limpa e sustentável em um planeta cada vez mais dependente dos combustíveis fósseis, conhecidos pelos impactos gerados no meio ambiente.
O Departamento de Energia dos Estados Unidos descreveu a descoberta como um "grande avanço científico" que levará a "progressos na defesa nacional e ao futuro da energia limpa". Na visão da secretária de energia do país, Jennifer M. Granholm, o trabalho entrará "nos livros de História". As usinas nucleares atuais trabalham com fissão, que tem impactos ambientais. Há décadas, cientistas buscam avanços na fusão nuclear, considerada uma fonte de energia limpa e potencialmente inesgotável.
O trabalho conduzido pelo Laboratório Nacional Lawrence Livermore (LLNL), ligado ao Departamento de Energia americano, deixa o processo de fusão mais perto da realidade. Kim Budil, diretora do LLNL, avalia que o resultado atingido é um "dos desafios científicos mais significativos já enfrentados pela humanidade". "Alcançá-lo é um triunfo da ciência, da engenharia e, acima de tudo, das pessoas", afirma, em nota.
Durante a fusão controlada, foram fornecidos 2,05 megajoules (MJ) de energia ao alvo, resultando em 3,15MJ de saída de energia de fusão. Para isso, eles precisaram recorrer à ajuda de lasers ultrapotentes. Isso porque a fusão nuclear combina dois átomos de hidrogênio para formar um átomo de hélio mais pesado, liberando uma grande quantidade de energia no processo. Esse fenômeno ocorre dentro das estrelas, incluindo o Sol. Na Terra, porém, só pode ser alcançado com a ajuda de lasers ultrapotentes.
O experimento inédito ocorreu no National Ignition Facility (NIF), que tem o tamanho de um estádio esportivo e é o maior sistema de lasers do mundo. Por volta de 1h do último dia 5, 192 lasers foram apontados para um alvo do tamanho de um dedal, onde estava localizada uma cápsula minúscula feita de diamante e contendo isótopos de hidrogênio (deutério e trítio). Os lasers geraram uma temperatura de cerca de 150 milhões de graus — o equivalente a 10 vezes à do Sol — provocando a fusão dos átomos de hidrogênio.
A reação durou uma fração de segundo e produziu cerca de 3,5 megajoules de energia. "Essa é uma conquista marcante para os pesquisadores e funcionários do National Ignition Facility que dedicaram suas carreiras para ver a ignição por fusão se tornar uma realidade, e esse marco, sem dúvidas, desencadeará ainda mais descobertas", afirma a secretária de energia dos EUA, Jennifer M. Granholm.
Saiba Mais
- Ciência e Saúde Chuva de meteoros poderá ser vista a olho nu nesta quarta; confira imagens
- Ciência e Saúde Confiança na ciência caiu após campanhas de desinformação, diz Fiocruz
- Ciência e Saúde Rover da Nasa capta som inédito de "demônio de poeira" em Marte; escute
- Ciência e Saúde Fusão nuclear: como cientistas alcançaram 'Santo Graal' da energia limpa
Décadas de trabalho
Na década de 1960, um grupo de cientistas pioneiros do LLNL levantou a hipótese de que os lasers poderiam ser usados para induzir a fusão em um ambiente de laboratório. Liderada pelo físico John Nuckolls, que, mais tarde, atuou como diretor do laboratório, o projeto de fusão de confinamento inercial resultou em pesquisas e desenvolvimentos nas áreas de laser, óptica, diagnósticos, fabricação de alvos, design experimental, modelagem e simulação de computador.
Apesar do avanço obtido depois de mais de 60 anos de trabalho, a equipe reconhece que há muitos obstáculos a serem superados. "Nossos cálculos sugerem que é possível, com um sistema de laser em grande escala, atingir um desempenho de centenas de megajoules. Mas ainda estamos muito longe disso", reconhece Budil.
Professor do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo, Euclydes Marega Junior tem a mesma avaliação. Segundo ele, vai demorar para transformar o experimento em algo industrial. "É preciso fazer isso em grande escala. Eles provaram que é possível, mas deve ser possível e viável economicamente. Atualmente, é uma forma cara de produção porque é uma coisa nova. A ideia é fazer com que se torne uma coisa barata e acesssivel", explica.
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.
Em busca do carbono zero
"O mundo busca energia limpa — ou seja, durante o processo de produção, a emissão de carbono deve ser zero ou o mínimo possível. Hoje, as energias que temos e que são consideradas limpas dependem do clima: solar, eólica e hidráulica. Mas a demanda de energia é constante. A energia nuclear não produz CO2. O problema é que a fissão emite resíduos radioativos, que são nocivos aos humanos. Já a energia produzida pela fusão nuclear é limpa e não é maléfica à humanidade."
Euclydes Marega Junior, professor do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP)
Usinas brasileiras
No Brasil, a energia nuclear é produzida por duas usinas, a Angra 1 e Angra 2, responsáveis pela produção de 3% da energia consumida no país. Elas estão localizadas em Angra dos Reis (RJ) — a escolha se deu considerando a proximidade do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Assim, é mais fácil transmitir a energia produzida para os grandes centros de consumo do país. Além disso, estar perto do mar é importante porque, no processo de produção de energia, usa-se água para resfriar o sistema. A água não entra em contato com a radioatividade.
Sem resíduos e gases do efeito estufa
A fissão nuclear é usada em usinas nucleares espalhadas pelo mundo. Apesar de não lançar gases responsáveis pelo efeito estufa, esse processo gera impactos — os resíduos radioativos são perigosos para os seres humanos. "Ela é boa para o clima, mas perigosa para a humanidade", resume Euclydes Marega Junior, professor do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP).
Já o resultado da fusão nuclear é considerado limpo porque não produz nem resíduos radioativos nem gases de efeito estufa. Outra diferença é o procedimento adotado em caso de problemas durante a produção de energia. "Ao contrário da fissão, a fusão não acarreta o risco de um acidente nuclear. Se houver uma falha no sistema, a reação é simplesmente interrompida" explica, à agência France-Presse de notícias (AFP), Erik Lefebvre, chefe de projetos da Comissão de Energia Atômica da França (CEA).
O processo, porém, só é possível quando se aquece materiais a temperaturas extremamente altas, acima de 100 milhões de graus Celsius, o que é considerado, na avaliação de especialistas, um obstáculo a ser superado. "É preciso encontrar mecanismos para isolar essa matéria extremamente quente de tudo que poderia esfriá-la", afirma Lefebvre.
Ele enfatiza que se trata de uma "fonte de energia totalmente descarbonizada", considerada "uma solução futura para os problemas energéticos em escala global". Segundo Lefebvre, o estado de desenvolvimento atual da fusão faz com que ela não represente uma solução imediata para a crise climática e para a necessidade de uma rápida transição de energias fósseis. "O caminho ainda é muito longo até uma demonstração em escala industrial e que seja comercialmente viável", avalia. A estimativa dele é que projetos do tipo demandem mais 20 ou 30 anos de trabalho.