Eles tiraram a mecânica quântica do campo puramente teórico, apontando caminhos pelos quais esse estranho mundo subatômico está revolucionando a tecnologia. Graças às pesquisas do francês Alain Aspect, 75 anos, do norte-americano John Clauser, 79, e do austríaco Anton Zeilinger, 77, estão em desenvolvimento supercomputadores com velocidades inigualáveis, sensores ultraprecisos e sistemas de criptografia impossíveis de serem burlados.
A descoberta de um mecanismo chamado entrelaçamento quântico, pelo qual duas partículas estão perfeitamente associadas, independentemente da distância entre elas, rendeu ao trio o prêmio Nobel de Física, anunciado, ontem, pela Academia Sueca de Ciências. Segundo o Comitê Nobel, o prêmio justifica-se pelo fato de os laureados terem "realizado experimentos inovadores usando estados quânticos entrelaçados, nos quais duas partículas se comportam como uma unidade, inclusive quando estão separadas".
Prevista teoricamente, a propriedade de elementos subatômicos se comportarem como um só causou perplexidade a ninguém menos que Albert Einstein. Uma metáfora clássica para explicar o entrelaçamento quântico pede que se imagine duas caixas contendo, cada uma delas, uma moeda. Se alguém no Hemisfério Norte brinca de cara ou coroa e o resultado é cara, lá no Hemisfério Sul a outra instantaneamente apontará coroa.
Parece ficção, mas os experimentos de Aspect, Clauser e Zeilinger mostraram que não é só perfeitamente possível como — ao contrário do que desejam muitos místicos — não há nada esotérico nisso. Em 2019, usando o conhecimento do trio, cientistas escoceses da Universidade de Glasgow capturaram, pela primeira vez, o fenômeno em quatro imagens de fótons (partícula subatômica) em diferentes mudanças de fase.
Teletransporte
"Não é como nos filmes de Star Trek ou algo assim", declarou Zeilinger em uma coletiva de imprensa. "Mas o ponto é que, usando o entrelaçamento, você pode transferir todas as informações que são transportadas por um objeto para algum outro lugar onde o objeto é reconstituído", explicou. A pesquisa do austríaco dedica-se ao teletransporte quântico. Na entrevista, modestamente, o físico afirmou que não esperava o prêmio. "Fiquei muito surpreso em receber a ligação", afirmou.
Em 2010, Zeilinger e John Clauser ganharam o prêmio Wolf pelos avanços na pesquisa de teletransporte quântico. Clauser é responsável por desenvolver, na prática, ideias do irlandês John Bell, que desenvolveu o mais importante teorema da física quântica. Segundo o Comitê Nobel, "algumas brechas permaneceram após o experimento de John Clauser", e coube ao francês Alain Aspect, também por meio de experimentos, fechar essa lacuna. O professor da Universidade Paris-Saclay agradeceu o Nobel e atribuiu "parte do mérito" da descoberta do entrelaçamento quântico a Albert Einstein.
"Tornou-se cada vez mais claro que um novo tipo de tecnologia quântica está surgindo", disse, no site do prêmio, Anders Irbäck, presidente do Comitê Nobel de Física. "Podemos ver que o trabalho dos laureados com estados emaranhados é de grande importância, mesmo além das questões fundamentais sobre a interpretação da mecânica quântica."
Mercado global
De acordo com o doutor em física Enrique Solano, que fundou duas companhias de tecnologia quântica na Espanha (Kipu Quantum e Quanvia), se em 1900 Einstein, Max Planck, Erwin Schrödinger e Werner Heisenberg estabeleceram a teoria quântica, "com Aspect, Clauser e Zeilinger, começa uma era de experimentos de informação quântica, chega a associação dos princípios da física quântica com o processamento de informação e, com ela, a computação quântica". Devido ao fenômeno de emaranhamento quântico, "conjectura-se que, muito em breve, em cinco anos, teremos computadores quânticos capazes de cálculos em subsegundos que, com os supercomputadores de hoje, levariam milhares de anos".
"Estamos falando de um ramo da física teórica que passou para as tecnologias quânticas, um negócio tão bem estabelecido que governos da Europa, da Ásia e dos Estados Unidos estão investindo milhares de euros neles, e já existe um mercado global em torno deles", continua Solano. Google, IBM e Intel são algumas das companhias que investem na computação quântica.
"Com seus experimentos pioneiros em emaranhamento quântico, Aspect, Clauser e Zeilinger trouxeram a mecânica quântica de seus primórdios filosóficos — que remontam a quase um século — para os dias atuais", comenta Penelope Lewis, do Instituto Norte-Americano de Física. "Seus experimentos lançaram as bases para avanços incríveis em computação quântica e criptografia, tecnologias com potencial para transformar o mundo moderno. É uma maneira magnífica de conectar o passado, presente e futuro da física aplicada."
AFP - Austrian physicist Anton Zeilinger addresses a press conference on October 4, 2022 at the Institute of Quantum Physics of the University in Vienna, after he was awarded with the 2022 Nobel Prize in Physics. - The Royal Swedish Academy of Sciences has decided on October 4, 2022 to award the 2022 Nobel Prize in Physics to Anton Zeilinger, among two other quantum mechanics physicians. (Photo by JOE KLAMAR / AFP)
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AFP - US physicist John Clauser poses in his home in Walnut Creek, California, on October 4, 2022, after winning the Nobel Prize for physics along with Austria's Anton Zeilinger and Frenchman Alain Aspect, for discoveries in the field of quantum mechanics that have paved the way for quantum computers, networks and secure encrypted communication. (Photo by Remi Vorano / AFP)
Aplicações transformadoras
"A mecânica quântica contraria muitas das formas cotidianas que percebemos o mundo ao nosso redor. No entanto, experimento após experimento ao longo dos anos — notadamente os dos laureados de hoje (ontem) — demonstraram não apenas a aplicabilidade fundamental da teoria, mas seu tremendo poder. Talvez, a aplicação mais transformadora seja a da computação quântica, que abre nosso acesso a cálculos complexos com eficiência e rapidez. Com o tempo, as aplicações do mundo real podem incluir o desenvolvimento mais rápido de medicamentos e vacinas, melhorar a eficiência das baterias, aumentar a precisão das previsões meteorológicas e proteger dados com criptografia quântica, entre outros."
Michael H. Moloney, chefe executivo da Academia Norte-Americana de Física
Um fenômeno "aterrorizante"
Se causa estranhamento ao leitor o conceito de entrelaçamento quântico, ele certamente não está sozinho. O gênio Albert Einstein questionou o fenômeno e o descreveu como "aterrorizante". Ainda hoje, muitos graduados em física não conseguem entender o fenômeno, assegurou à agência France-Presse de notícias (AFP) Chris Phillips, físico do Imperial College de Londres.
Entrelaçamento ou emaranhamento é um mecanismo em que duas partículas quânticas estão perfeitamente correlacionadas, independentemente da distância entre elas. Por exemplo, um fóton (partícula de luz) que passa por um vidro especial para dar origem a dois fótons. Essas duas partículas resultantes "não têm a mesma cor da inicial, mas estão entrelaçadas porque surgiram do mesmo fóton", explica Phillips. "Se você medir um desses fótons, o outro será instantaneamente afetado — não importa a distância entre eles."
Phillips constatou esse fenômeno "extremamente estranho" em seu laboratório, onde trabalha com dois feixes de fótons emaranhados. "Se eu colocar minha mão em um desses feixes, algo instantaneamente acontece no outro feixe do outro lado da sala: se move uma agulha que registra o fenômeno."
O fato de que algo possa acontecer simultaneamente, mesmo a grandes distâncias, invalida o chamado "princípio da localidade", segundo o qual algo que acontece em um lugar não deve afetar o que acontece em um lugar distante. Em 1964, o físico norte-irlandês John Stewart Bell desenvolveu uma teoria para verificar se essas "variáveis ocultas" que tanto preocupavam Einstein existiam. Mas faltavam experiências de laboratório. Foi isso que o físico francês Alain Aspect conseguiu duas décadas depois. Ele provou que duas partículas luminosas "entrelaçadas" afetam uma à outra, instantaneamente, repetidamente.
Em entrevista ao Nobel, Aspect confessou que, depois de todos esses anos, ainda tem dificuldade em aceitar a "imagem mental" desse princípio "que é algo 'totalmente louco'". Seus colegas premiados, o austríaco Anton Zeilinger e o norte-americano John Clauser também testaram o teorema de Bell e chegaram à mesma conclusão: o fenômeno só pode ser explicado com esse princípio de "não localidade".
O grande mistério, contudo, permanece 100 anos depois de Einstein: Por que esse fenômeno ocorre? "Temos que ser humildes em relação à física", explica Chris Phillips. "Apenas existe."
Quem são eles
John Clauser (EUA)
Nasceu em 1942, nos Estados Unidos, e, na década de 1960, resolveu estudar as teorias quânticas de John Bell. Clauser acreditava que poderia testar as ideias de Bell em um laboratório, mas os principais físicos da época responderam com desprezo. Ele propôs o teste independentemente de sua tese sobre radioastronomia e o realizou com colaboradores em 1972, enquanto estava na Universidade da Califórnia em Berkeley.
Alain Aspect (França)
Nasceu em 1947 na França e atualmente é professor na Universidade Paris-Saclay e da Ecole Polytechnique. O interesse pelo mundo quântico surgiu com um livro escrito por Claude Cohen-Tannoudji sobre o assunto (Cohen-Tannoudji ganhou o Nobel em 1997), que por sua vez o levou a John Bell.
Anton Zeilinger (Áustria)
Apelidado de "papa quântico", o físico Anton Zeilinger, nascido em 1945, na Áustria, tornou-se um dos cientistas mais famosos de seu país ao ter sucesso, pela primeira vez, em 1997 no teletransporte quântico de partículas de luz. Usando as propriedades do emaranhamento quântico, criptografou a primeira transação bancária por esse meio em Viena, em 2004.