Às vésperas da 27ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP27, pesquisadores alertam que é preciso olhar com atenção para o topo do planeta. O Ártico, a área mais fria e inóspita da Terra, sofre, mais do que qualquer outra região, os efeitos do aquecimento global, com derretimento acelerado do subsolo congelado, o chamado permafrost. Ali, encontra-se estocada 1,5 trilhão de toneladas de carbono, o dobro do que circula na atmosfera. Deixar escapar esse gás de efeito estufa é um risco não apenas para o Polo Norte, mas para toda a Terra.
As previsões não são boas e apontam para um futuro sombrio caso as metas de redução de emissões do Acordo de Paris sejam descumpridas. Um estudo publicado na edição deste mês da revista Annual Review of Environment and Resources mostra que, até o fim do século, o permafrost, em rápido aquecimento, provavelmente emitirá tanto dióxido de carbono e metano na atmosfera quanto uma grande nação industrializada e, potencialmente, mais do que o maior poluente do planeta, os Estados Unidos, emitiram desde o início da revolução industrial.
Usando mais de uma década de registros científicos e modelos baseados em regiões, o estudo, liderado pela Northern Arizona University e pela Rede Internacional de Carbono Permafrost, prevê emissões cumulativas até 2100 sob baixas temperaturas, cenários de aquecimento médio e alto. "Esperamos que essas previsões não apenas atualizem as informações para a ciência, mas sirvam como novos guias para os formuladores de políticas que estão trabalhando para estabilizar o clima e evitar exceder as metas de temperatura", disse Ted Schuur, professor do Departamento de Biologia e Centro de Ciência e Sociedade do Ecossistema e principal autor do estudo.
A equipe estima que, em um cenário de baixo aquecimento — que poderia ser alcançado se a comunidade global, reduzindo as emissões de combustíveis fósseis, limitasse o aumento de temperatura a 2°C ou menos —, o permafrost liberaria 55 pentagramas (Pg) de carbono, até o fim do século, na forma dos gases de efeito estufa dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4). Se nada for feito para mitigar o aquecimento climático, porém, o estudo prevê que o Ártico poderá liberar 232Pg de carbono no mesmo período.
As projeções da equipe vão além das previsões internacionais anteriores e consideram também a dinâmica hidrológica e biogeoquímica, além dos pontos de inflexão exclusivos da zona de permafrost. Por exemplo, os cientistas estão testemunhando um degelo abrupto em muitas regiões do subsolo congelado, onde o rápido derretimento faz com que a superfície da terra entre em colapso, formando lagos ou promovendo outras mudanças na hidrologia da superfície.
Rotas de fuga
Uma vez que o solo anteriormente congelado erode ou diminui, o carbono armazenado pode entrar na atmosfera por meio da respiração microbiana ou do metano. Essas mudanças rápidas e não lineares alteram veloz e permanentemente a capacidade do permafrost de armazenar os gases de efeito estufa e podem alternar grandes áreas da região do Ártico de sumidouros para fontes de CO2.
Estimativas recentes sugerem que um quinto do terreno atual do permafrost é vulnerável ao degelo abrupto. "Uma vez que as emissões de carbono do permafrost aumentem em resposta ao aquecimento climático, como alguns modelos preveem, não haverá uma maneira de interromper esse processo", destaca Roisin Commane, professora-assistente de ciências da Terra e ambientais da Universidade de Columbia e coautora do novo estudo. "Podemos precisar reduzir nossas emissões de combustíveis fósseis muito mais cedo do que o planejado atualmente por muitos governos para evitar desencadear possíveis pontos de inflexão no clima da Terra."
O potencial de atingir pontos de inflexão regionais e de todo o sistema terrestre é uma das razões pelas quais a história do carbono no Ártico e sua segurança futura permanecem apenas parcialmente escritas, disseram os pesquisadores. O novo estudo descreve nove futuros diferentes, com base em como o aquecimento climático progride e quais ações os líderes globais tomam para reduzir as emissões de combustíveis fósseis.
"As emissões do permafrost serão um grande e substancial fator contribuinte para os gases de efeito estufa atmosféricos, não importa qual dos cenários possíveis se torne realidade", diz Guido Grosse, chefe da Seção de Pesquisa do Permafrost no Instituto Alfred Wegener em Potsdam, Alemanha. "Mas haverá enormes diferenças entre os cenários de mitigação que importam para o orçamento global de carbono", destaca.
Reduzir as emissões causadas pelo homem, segundo Grosse, ajudará a garantir que o permafrost faça uma contribuição menor para o aquecimento global, enquanto "fazer negócios como de costume" garantirá que o Ártico tenha um papel considerável no aquecimento e represente um obstáculo maior para que os esforços de mitigação sejam alcançados.
Monitoramento
Como o Ártico não é regulamentado por nenhum estado e o afastamento geográfico dificulta seu monitoramento de forma abrangente, os autores enfatizam que os esforços internacionais de redução de emissões devem levar em conta a região nas metas climáticas e nas ações futuras. O estudo também ressalta a importância de acompanhar as mudanças com redes colaborativas e ferramentas científicas, como tecnologia de sensoriamento remoto.
"Os equipamentos de sensoriamento remoto podem realmente nos ajudar a ver e rastrear o que está acontecendo com o permafrost de maneira física", disse Commane. "Sensores de alta resolução podem ver evidências de colapso do solo congelado, indicar como os corpos d'água estão mudando e até mesmo quão úmidos ou congelados estão os solos. Mas os satélites que nos dizem quanto carbono do permafrost acaba na atmosfera são limitados, e é preciso haver investimento de agências espaciais o mais rápido possível."
Schuur disse que sua equipe de pesquisa também está vendo evidências de mudanças rápidas no permafrost. "As mudanças que estamos testemunhando mostram a necessidade urgente de reduzir as emissões e manter o carbono do permafrost no solo. Neste verão, no meu local de estudo no Lago Eight Mile, no Alasca, vimos um degelo generalizado do permafrost após um inverno com queda de neve recorde e perdas de carbono quatro vezes maiores do que a média nas últimas décadas", conta.
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Limiar irreversível
“O Ártico contém vários componentes delicadamente equilibrados do sistema climático que têm o potencial de responder ao aquecimento com consequências globalmente prejudiciais. Dois desses sistemas são o permafrost e o manto de gelo da Groenlândia. O primeiro contém carbono suficiente preso em seu solo congelado para elevar as temperaturas globais em cerca de 3°C se liberado na atmosfera, e o último contém gelo suficiente para elevar o nível global do mar em 7,4m se tudo derreter. Ambos são muito sensíveis ao aquecimento e podem passar de um limiar irreversível, o ponto de inflexão, caso as taxas de aquecimento locais continuarem a subir.”
Jonathan Bamber, pesquisador do Centro de Glaciologia da Universidade de Bristol, na Inglaterra
Celeiro de pandemias
Além do lançamento em potencial de gases de efeito estufa na atmosfera com o desgaste do permafrost, o derretimento das geleiras do Ártico aumenta o risco de transbordamento viral, segundo pesquisadores da Universidade de Ottawa, no Canadá. Isso significa que o impacto das mudanças climáticas pode fazer com que micro-organismos infectem novos hospedeiros, tornando a região um celeiro de futuras pandemias.
Os coautores do estudo, Audrée Lemieux e Stéphane Aris-Brosou, são os primeiros a avaliar dados de sequenciamento de DNA e RNA da região. A equipe coletou amostras do Lago Hazen, o maior sistema de água doce no Alto Ártico, para testar como o risco de transbordamento viral é afetado pelo escoamento das geleiras. O fenômeno acontece quando um vírus infecta um novo hospedeiro pela primeira vez.
"Se a mudança climática também altera a gama de espécies de potenciais vetores virais e reservatórios para o norte, o Alto Ártico pode se tornar um terreno fértil para pandemias emergentes", alerta Aris-Brosou, professora associada do Departamento de Biologia. Lemieux desenvolveu um algoritmo para determinar o risco de transbordamento viral. Os resultados sugeriram que a probabilidade era maior para amostras retiradas de cursos hídricos volumosos, que contêm mais água derretida das geleiras. À medida que as temperaturas globais aumentam, espera-se que os grandes blocos de gelo nesta área se tornem maiores, aumentando, portanto, a possibilidade de novos hospedeiros serem infectados.
"Como mostramos que o risco de transbordamento aumenta nos sedimentos lacustres de um lago do Alto Ártico, um ambiente que já está aquecendo mais rápido que o resto do mundo, acreditamos que a análise deve incentivar atividades de vigilância para mitigar quaisquer efeitos potenciais que transbordamentos podem ter no futuro", diz Lemieux. Segundo Aris-Brosou, as descobertas podem apontar para um cenário semelhante ao surgimento do ebola e do Sars-CoV-2, onde ocorre "exposição repetida a novos hospedeiros, que não têm imunidade a esses vírus", destaca.
O efeito duplo das mudanças climáticas, aumentando o risco de transbordamento e levando a um deslocamento para o norte nas faixas de espécies, pode ter uma consequência dramática na área examinada. "À medida que as mudanças climáticas e as pandemias estão remodelando o mundo em que vivemos, entender como esses dois processos interagem se tornou crítico", diz Aris-Brosou.