A doença de Crohn é uma síndrome inflamatória em que o sistema imunológico ataca o próprio trato gastrointestinal. As reais causas ainda são pouco conhecidas pela ciência. Pesquisadores da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, deram um passo importante para desvendar esse mistério. Eles descobriram um mecanismo que pode ser uma proteção natural contra a enfermidade. O trabalho, detalhado, nesta semana, na revista Nature, abre novo caminho para pesquisas de tratamento e prevenção da doença.
Estudos anteriores indicaram que uma mutação genética relativamente comum — presente em metade dos estadunidenses, por exemplo — está presente na maioria dos pacientes. A questão a ser respondida, entretanto, é: por que algumas pessoas com a alteração no DNA têm a doença de Crohn, enquanto outras, não? A discussão gira em torno de diversos estímulos, como fatores ambientais — decorrentes de hábitos alimentares e alteração na microbiota intestinal — e infecções no intestino causadas por vírus e bactérias.
Investigando os fatores ambientais, a equipe estadunidense constatou que um dos vários desencadeadores da doença pode estar relacionada ao norovírus — responsável por causar diarreia, vômito, dor de estômago e outros problemas gastrointestinais em indivíduos contaminados. A hipótese é de que a infecção por esse vírus comum bloqueie a secreção de células inibidoras de apoptose cinco (API5).
Bernardo Martins, gastroenterologista do Hospital Santa Lúcia, unidade Brasília, explica que o sistema imunológico é aprimorado para que, ao ser exposto a patógenos, comece a atacá-los. Uma das "armas" são os linfócitos, que secretam as proteínas inibidoras de apoptose. "A apoptose nada mais é que a destruição das células, um fenômeno de resposta imune", explica.
No caso da doença de Crohn, os pacientes têm susceptibilidade genética a ter alteração do controle da apoptose e, ao entrararem em contato com o vírus, há a perda desse controle. "O trabalho evidenciou que seria uma combinação entre predisposição genética e o fator ambiental que, nesse caso, foi o contato com o norovírus", afirma Bernardo Martins.
Coautor sênior do estudo, Ken Cadwell ressalva que a pesquisa forneceu informações inovadoras sobre a forma de as células T, um tipo de linfócito, protegerem o revestimento do intestino, a qual julgam serem importantes na prevenção da doença de Crohn. "Descobrimos que as células T produzem uma molécula chamada API5, e que os desencadeadores infecciosos da doença podem interferir na produção desta molécula", conclui.
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Experimentos
Para chegar à conclusão, a equipe analisou camundongos e tecidos intestinais humanos. Na primeira fase, as cobaias receberam injeções de API5, e todas sobreviveram. Metade do grupo de controle, não submetido à intervenção experimental, morreu. Nos estudos das amostras humanas, constatou-se que as pessoas com doença de Crohn tinham entre cinco e 10 vezes menos células T produtoras de API5 no intestino, comparadas às sem a enfermidade.
A hipótese é de que a proteína atue como uma barreira extra de proteção contra esses danos, o que garantiria que mesmo aqueles com a mutação referente à doença de Crohn tenham um intestino saudável. "Se você tem um inibidor da apoptose, você tem algo que inibe a destruição das células. Então, é um mecanismo de proteção", afirma Martins.
Em outro conjunto de experimentos, os pesquisadores criaram "mini-intestinos" com tecidos coletados de humanos que testaram positivo para a mutação. A aplicação de API5 nesses pequenos órgãos protegeu as células do revestimento intestinal, abrindo uma nova possibilidade de intervenção. "Compreender como funciona o API5 pode nos ajudar a desenvolver essa molécula, inclusive como alvo terapêutico", diz Cadwell. "Ao contrário da maioria das terapias para essa doença, que suprimem o sistema imunitário, acreditamos que temos uma forma de proteger o revestimento do intestino."
O coloproctologista Bruno Augusto Alves Martins, membro da Sociedade Brasileira de Coloproctologia, ressalta que o estudo é inovador ao apontar o mecanismo exato pelo qual o vírus faz a precipitação da enfermidade. "Se eu consigo ter um ponto específico que desencadeia a doença, posso atacar esse ponto e gerar uma terapia alvo", explica.
Segundo Bernardo Martins, hoje, é um desafio manter os medicamentos disponíveis funcionantes. "Na maioria das vezes, com o passar do tempo, eles perdem a resposta." A partir disso, faz-se necessário alterar a medicação para um remédio que atue em outro local, na qual a doença está ativa. "Há medicamentos que agem nas células do intestino, outros que atuam apenas nos linfócitos, por exemplo", ilustra o gastroenterologista. "Por isso, quanto mais mecanismos de controle de doença forem desenvolvidos, mais opções terapêuticas serão possíveis."
*Estagiária sob a supervisão de Carmen Souza
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Risco de sequelas
A doença de Crohn pode acometer qualquer ponto do tubo gastrointestinal, desde a boca até o ânus. Os principais sintomas são dor abdominal, diarreia crônica e perda de peso. É comum a observação de fissuras e úlceras na região perianal — fatores preocupantes quando associados às observações anteriores. A patologia não tem cura, porém é importante realizar o controle para que o paciente não tenha sequelas no intestino.
As principais complicações são as estenoses intestinais — estreitamentos do órgão — ou as fístulas, que são conexões anormais que se formam entre o intestino e outras partes do corpo. "Pode haver fístulas entre intestino e a pele, entre o intestino e a bexiga", explica Bruno Augusto Alves Martins, membro da Sociedade Brasileira de Coloproctologia.