Svaant Pääbo terminava a xícara de chá em sua casa, em Leipzig, na Alemanha, quando recebeu uma chamada de Estocolmo. Achou que fosse algo relativo à casa de campo que tem na Suécia, seu país de origem. "Eu pensei: 'oh, o cortador de grama quebrou ou algo assim'", contou, pouco depois, a Adam Smith, diretor científico de divulgação do Prêmio Nobel. Não havia nada de errado com o cortador. Pääbo repetia a façanha do pai, o laureado Sune K. Bergström, ganhando o prêmio máximo da ciência na categoria medicina/fisiologia.
Curioso que o "paciente" principal do cientista, que estudou egiptologia e medicina na Universidade de Uppsala, na Suécia, foi extinto há cerca de 40 mil anos. O prêmio da Academia Sueca de Ciências reconhece o trabalho do atual diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva em uma área fundada por ele, a paleogenética, campo de pesquisa que Pääno tem dedicado a decifrar o genoma do homem de Neandertal, o mais próximo parente com o qual o Homo sapiens já conviveu.
A historiografia neandertal poderia até ser dividida entre A.P. e D.P. Isso porque, antes de Pääbo, a imagem desses humanos originários da Europa era a de brutamontes desajeitados e inferiores do ponto de vista cognitivo. Muitos outros pesquisadores têm provado que, em vez disso, o neandertal não difere muito de seus primos próximos, inclusive com bons indícios arqueológicos de que tinham uma cultura sofisticada. Porém, foi o sueco quem apontou essa semelhança, desvendando o DNA do Homo neanderthalensis. Ao fazê-lo, aprimorou o conhecimento sobre o próprio sapiens.
"É justo que ele receba o prêmio de medicina. Seu trabalho recente tem sido sobre padrões de variação genética humana, que são devido à nossa herança neandertal", observa o professor de biologia da Universidade de Uppsala Mattias Jakobsson. "Alguns desses padrões, por exemplo, estão relacionados à covid-19." Recentemente, um estudo do Max Planck e do Instituto Karolinska apontou que alguns genes do cromossomo 12 herdados do Homo neanderthalensis podem favorecer a resposta imunológica ao Sars-CoV-2, protegendo quem tem essas variações do coronavírus.
Método inovador
Foi um longo caminho até Pääbo, 67 anos, decifrar as letras que compõem o genoma neandertal. Embora ferramenta promissora, o DNA se modifica quimicamente com o tempo, se degradando em pequenos fragmentos. O cientista sueco trabalha com material milenar e, nessa escala, sobram apenas vestígios, sendo que os restos estão contaminados por bactérias, fungos e material genético contemporâneo. Por isso, antes de se aventurar em campo, ainda como aluno de pós-doutorado, o pesquisador se voltou ao desenvolvimento de um método que permitisse estudar o genoma antigo, sem interferências.
Na década de 1990, já professor da Universidade de Munique, Pääbo decidiu estudar o DNA mitocondrial — organelas celulares que contêm o próprio código genético. Embora o genoma mitocondrial seja pequeno e contenha uma fração das informações do total, ele foi escolhido porque, como está presente em milhares de cópias, as chances de se extrair dados confiáveis é grande. A partir de um pedaço de osso de 40 mil anos, o cientista conseguiu a primeira sequência de um ser humano extinto, publicando a descoberta em 2010.
Quatro anos depois, a paleogenética deu um salto, com a divulgação de quase todo o genoma neandertal. "Encontramos cerca de 30 mil posições em que os genomas de quase todos os humanos modernos diferem dos neandertais e grandes símios", disse Pääbo, à época. "Eles respondem ao que torna os humanos anatomicamente modernos 'modernos' também no sentido genético. Algumas dessas mudanças genéticas podem ser a chave para entender o que distingue as habilidades cognitivas dos humanos de hoje daquelas dos hominídeos agora extintos."
Dois anos antes, a equipe de Pääbo havia alcançado um feito extraordinário: a decodificação do genoma de um pequeno osso na caverna de Denisova, na Sibéria, confirmou a existência de outro grupo humano já extinto, os denisovanos. Foi também graças aos estudos do pesquisador que se sabe que o Homo sapiens e os neandertais procriaram — ou não haveria herança genética desse antigo povo no homem moderno.
"Nas mãos do Dr. Pääbo, o uso cuidadoso da genômica permitiu que ele avaliasse a ancestralidade humana a partir de fragmentos genéticos recuperados de espécimes ósseos de hominídeos extintos que povoaram o mundo há mais de 40 mil anos", disse, em nota, David Gutterman, presidente da Associação de Ciências Fisiológicas dos Estados Unidos. "Criar um mapa genômico a partir de um DNA tão antigo e fragmentado não foi apenas um tour de force, mas também identificou as descobertas marcantes de que humanos modernos e neandertais, bem como denisovanos — um terceiro hominídeo distinto — , coabitaram e cruzaram durante um período de tempo. Sua pesquisa também mostrou que mutações genéticas únicas distinguem o humano moderno das formas humanas mais antigas."
Passado X presente
"As descobertas de Pääbo geraram uma nova compreensão de nossa história evolutiva", destacou o júri do Nobel. Também lançaram uma disciplina inovadora. Com a paleogenética, além de informações de origem e migração, sabe-se que sequências de genes arcaicos, provenientes dos humanos extintos, influenciam a fisiologia do homem moderno. A versão do gene EPAS1, por exemplo, herdada dos denisovanos, confere uma vantagem para a sobrevivência em grandes altitudes e é comum entre os tibetanos atuais.
"Padrões de expressão genética diferencial podem estar ligados a traços hereditários, como demonstrado pelo Dr. Pääbo e colegas em trabalho publicado na Physiological Genomics em 2013", escreveu Kübler. "Embora ligações semelhantes da genômica à fisiologia sejam infinitamente mais complexas em humanos ancestrais, a análise genômica já sugeriu uma origem neandertal de genes que promovem diabetes mellitus, doença inflamatória intestinal e regulação imunológica. Análises futuras podem nos ajudar a entender melhor quem somos e o que nos diferencia."
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"Primo" mais próximo
Os neandertais são um grupo extinto de humanos e os parentes evolutivos mais próximos do homem moderno. Os mais antigos conhecidos têm em torno de 400 mil anos e foram extintos há cerca de 40 mil anos. Eles viviam na Europa, no Oriente Médio, na Ásia Central e na Sibéria Ocidental. O nome do grupo vem do local em que os trabalhadores de uma pedreira de calcário descobriram partes de um crânio e ossos em 1856: o Neandertal perto de Düsseldorf, na Alemanha.
Embora o fóssil fosse tão grande quanto o de um ser humano que vive hoje, também mostrava diferenças claras: em comparação com o homem moderno, os neandertais tinham protuberâncias nas sobrancelhas mais pronunciadas e uma testa afundada. Os neandertais também tinham um rosto sem queixo, com cavidades nasais peculiares, o que facilitava o aquecimento do ar frio ao inalar.