No Paraná, o uso de extrato de cannabis está sendo testado em pacientes com Alzheimer. O estudo realizado pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) é pioneiro no Brasil e investiga os benefícios do THC (Tetrahidrocanabinol) e CBD (canabidiol ) para a reversão dos sintomas da doença. Após 22 meses de acompanhamento, foi possível observar melhoras no humor, no sono e na memória de Delci Ruver, de 78 anos.
A farmacêutica Ana Carolina Ruver Martins, principal autora da pesquisa e neta de Delci, começou a estudar os benefícios da cannabis em pacientes com Parkinson. No entanto, diante da progressão do Alzheimer no avô, ela propôs o protocolo de pesquisa voltada à doença. Delci começou utilizando o extrato de cannabis com uma dose de 500 microgramas de THC todos os dias antes de dormir, quantidade oito vezes maior do que a substância CBD.
"Essa dose foi ajustada para mais e para menos de acordo com os efeitos experimentados pelo paciente, e chegamos na melhor dose sendo 500 microgramas. Nós elencamos duas ferramentas de avaliações específicas, uma auxilia na determinação do estado mental e serve como uma triagem para determinar o nível de dificuldade cognitiva do paciente, como de memória, orientação espacial, raciocínio lógico e é chamada Mini Teste do Estado Mental (Mini-Mental)", conta a pesquisadora.
A outra ferramenta do protocolo do estudo é chamada Adas-Cognitivo, que consiste em verificar os progressos com o tratamento, coletando relatos do paciente e dos familiares. As substâncias da cannabis atuam no sistema endocanabinoide do organismo humano, sendo um importante aliado para a regulação e equilíbrio de processos fisiológicos do corpo.
Para exemplificar a atuação do THC e do CBD, a pesquisadora Ana Carolina compara o cérebro com uma orquestra. "Nessa orquestra, existem vários instrumentos que são todas as substâncias conhecidas como neurotransmissores. Esses neurotransmissores são responsáveis por controlar todo nosso organismo, como nosso movimento, memória, aprendizado, humor, dor, inflamação, sistema imunológico. Para que todas essas funções estejam bem, a orquestra precisa que o maestro exerça sua função adequadamente, e esse maestro é o que chamamos de sistema endocanabinoide, o sistema no qual as substâncias da cannabis atuam", diz.
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Resultados
As causas do Alzheimer ainda não são bem conhecidas. Porém, sabe-se que os sintomas começam a surgir por causa da morte de neurônios localizados no sistema nervoso central, ocasionando desequilíbrio entre as proteínas da região. "Assim, quando tratamos o paciente com cannabis, nós estamos ajudando o maestro dessa orquestra a equilibrar todo o sistema. De forma mais técnica, podemos dizer que o nosso sistema endocanabinoide sofre um decaimento com o avançar da idade e com isso ele reduz sua capacidade de manter o equilíbrio bioquímico do nosso organismo, conhecida como homeostasia", destaca a pesquisadora.
Com a progressão da doença, as falhas de memória em Delci Ruver foram se agravando. "Lembro até hoje meu avô relatando que a cabeça dele parecia que ficava vazia, como uma tontura, um branco, e aí ele não sabia mais nada, onde estava, que dia era, o que estava acontecendo e se perdia. Assim, ele passava a se perder e perder as coisas, o que o deixava com ansiedade, irritado. E essas e outras dificuldades fizeram com que ele não pudesse mais ficar sozinho ou fazer suas atividades sozinho", relata Ana Carolina.
Com o tratamento, Delci teve a autonomia restabelecida. "Ele viaja sozinho, cuida do sítio dele, cultivando plantas e pastagem, e também cuidando de animais como gado, e reconhece todas as pessoas. O que é inédito nesse estudo, ou seja, nunca antes foi relatado para nenhuma outra substância, é que o tratamento realizado com canabinoides reverteu os sintomas que o paciente apresentava e manteve a doença estável, ou seja, sem progredir."
Após os resultados positivos observados em Delci, a pesquisa se expandiu para 28 pacientes em estágio moderado de Alzheimer. Os participantes foram divididos em dois grupos, metade recebe 500 microgramas de THC e os 14 pacientes restantes recebem placebo. "O uso do placebo é muito importante para que os resultados possam ser validados e dar uma robustez maior para que um dia esse tratamento possa estar mais disponível para todos. A duração dessa etapa de coleta de dados foi de 6 meses e além da avaliação cognitiva, nós avaliamos o estado de ansiedade e depressão dos pacientes e fizemos análises bioquímicas no sangue e no líquor, que é o líquido que passa por nossa medula espinal e reflete o equilíbrio bioquímico do nosso sistema nervoso central", detalha Ana Carolina.
Cannabis em pacientes com Parkinson
Em 2017, Ana Carolina Ruver iniciou o mestrado na Unila, estudando os possíveis efeitos da cannabis em doenças neurológicas. "Nessa época, conheci a Associação Medianeirense de Portadores de Parkinson, e conhecendo o potencial dos canabinoides também para controle motor, eu resolvi propor um protocolo de estudo para a doença de Parkinson, que foi apoiado pelos meus orientadores e se tornou meu estudo de mestrado, em 2023 iniciarei a nova etapa que consiste no meu doutorado", ressalta a farmacêutica.
Oito pacientes participaram do estudo, com doses baixas de THC e CBD: metade recebeu 1mg de THC e outros quatro, 0,250mg da mesma substância. Cabe destacar que os pacientes estavam em estágios moderados e avançados da doença, apresentando dificuldades em se movimentar, além de problemas relacionados a dor, ansiedade, depressão e sono.
Após três meses de acompanhamento, foram observadas melhoras nos movimentos dos participantes do estudo. "Eles travavam menos durante os movimentos, e também tinham menos períodos conhecidos como off, que é quando os sintomas pioram durante o dia, conseguiam fazer atividades do dia a dia melhor, dormir melhor, reduziram a ansiedade e depressão".
Uso de cannabis medicinal no país e os desafios para a ciência
Para acessar o produto, a pesquisa conta com o apoio da Abrace, primeira instituição do país autorizada pela Justiça para cultivar maconha medicinal. Atualmente, 18 produtos à base de cannabis são aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil. Entretanto, apenas dois estão nas farmácias. A regulamentação em passos lentos prejudica o andamento de pesquisas vigentes na área. A demora na liberação pode ser atribuída a fatores como burocracia e proibicionismo (processo histórico que acarretou na proibição da maconha no país).
"Outra dificuldade, não só para pesquisa, mas também para os pacientes, é garantir a qualidade dos produtos, pois apesar da proibição, existem inúmeros produtos de cannabis por aí, e as pessoas estão utilizando sem o devido acompanhamento. Porém, consideramos que isso é um dos maiores problemas, pois não sabemos o que realmente tem nesses produtos, por não serem dosados e muitos serem comercializados como suplementos, não necessitando todo controle de qualidade que é exigido para os medicamentos, e assim não se pode fazer o acompanhamento correto dos pacientes na clínica", conclui a pesquisadora Ana Carolina Ruver.