Abordagens preventivas e de precisão deverão nortear a prática clínica na área de oncologia, segundo um dos mais importantes congressos mundiais sobre câncer. Realizado na semana passada em Paris, na França, e também transmitido on-line, o encontro anual da Sociedade Europeia de Oncologia Médica (Esmo) apresentou estudos promissores que, segundo a avaliação de participantes, podem revolucionar o tratamento de diversos tipos de tumores.
Porém, os especialistas destacam que é preciso traduzir essas descobertas para a realidade dos pacientes."Precisamos integrar a pesquisa clínica à prática clínica", disse, na coletiva de imprensa de abertura, Fabrice André, presidente científico do congresso e agora eleito para comandar a Sociedade.
Entre os cerca de 2 mil trabalhos apresentados em uma semana, os mais celebrados foram os que, diferentemente da quimioterapia tradicional, têm alvos precisos, se baseiam em perfis genéticos e, muitas vezes, utilizam o próprio sistema imunológico do paciente no tratamento. É o caso de um estudo do Instituto do Câncer da Holanda, considerado por André "absolutamente crucial".
O ensaio clínico de fase 3, a última antes de um medicamento ser submetido à aprovação das autoridades de vigilância sanitária, demonstrou que um tratamento para o câncer de pele melanoma é mais eficaz do que a terapia líder disponível atualmente. A abordagem de imunoterapia é semelhante à da celebrada CART, uma técnica em que "células assassinas" (as células T) do paciente, especializadas em combater invasores como os tumores, são colhidas e modificadas no laboratório para, novamente, serem infundidas no organismo.
Porém, em vez de mudar o perfil das assassinas, os pesquisadores holandeses amplificaram a amostra dos linfócitos infiltrantes de tumor (TIL), grupo celular que se reúne ao redor ou dentro do câncer para combater a doença. Assim, os cientistas conseguiram gerar bilhões dessas células imunes que, em um número bem maior do que existe naturalmente, deflagram uma resposta muito mais eficiente.
Outra diferença em relação à terapia com célula CAR-T é que esta primeira tem sido utilizada no tratamento de doenças do sangue, como linfomas e leucemias. Com a abordagem TIL, os pesquisadores conseguiram resultados significativos em pacientes com um tumor sólido, o melanoma, que pode ser agressivo e corresponde a 30% de todos os cânceres registrados no Brasil, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca).
"Nós transformamos um milhão de células em vários bilhões de células", explica John Haanen, oncologista do Instituto do Câncer da Holanda que liderou a pesquisa. O estudo foi realizado com 168 pacientes com metástases — quando a doença se espalha para outros tecidos e órgãos —, divididos aleatoriamente para receber o tratamento TIL ou a imunoterapia padrão atual, chamada ipilimumab. Esta última é usada em pessoas que não respondem ao medicamento de primeira linha, também um imunoterápico conhecido como anti-PD-1.
Passados três anos do estudo, os cientistas constataram que os pacientes da terapia TIL tiveram uma redução de 50% na progressão da doença e nos casos de óbito, em comparação aos tratados com ipilimumab. Além disso, no primeiro grupo, o tumor desapareceu em 20% dos participantes, contra 7% dos demais. Os pesquisadores continuam acompanhando os voluntários. Por ora, sabem que a nova abordagem resultou em tempo médio de sobrevivência superior a dois anos, em comparação a pouco mais de um ano e meio registrado no grupo do ipilimumab.
Saiba Mais
Na área de câncer de mama, a oncologista Debora Gagliato, da Beneficência Portuguesa de São Paulo e do comitê científico do Instituto Vencer o Câncer, destaca um importante estudo com um medicamento já existente no Brasil, o abemaciclibe, no tratamento de pacientes com esse tipo de tumor avançado. "Esse tratamento fez as mulheres viverem muito mais tempo. O estudo reportou uma sobrevida global mediana como nunca foi visto na história em mulheres com câncer de mama metastático", conta.
O estudo de fase 3 avaliou a adição do medicamento a uma outra substância, chamada inibidor não esteroidal da aromatase, em mulheres com câncer de mama avançado positivo para receptor hormonal (HR ) e negativo para HER2. Realizada com 493 pacientes cujo tumor tinha esse perfil genético, a pesquisa mostrou que aquelas que receberam o tratamento viveram mais de 12 meses, comparadas às que receberam quimioterapia padrão aliado ao anticorpo trastuzumabe.
Campanha
Além de novos tratamentos mais precisos, a organização do congresso voltou a atenção à prevenção do câncer, lançando, pela primeira vez na história do evento, uma campanha para que sejam realizadas pesquisas com esse enfoque. "Se quisermos ter sucesso no combate ao câncer, temos de desenvolver intervenções que tenham como foco a prevenção ao mesmo tempo em que continuamos a oferecer o melhor tratamento para pacientes de tumores que, infelizmente, não são preveníveis", justificou Rosa Giuliani, diretora de Políticas Públicas da Esmo.
Um dos estudos mais comentados no congresso foi justamente a identificação de um novo mecanismo associado ao câncer de pulmão em pessoas que nunca fumaram, abrindo caminho para estratégias de prevenção. Os pesquisadores, liderados pelo Instituto Francis Crick e pela Universidade College de Londres, ambos na Inglaterra, descobriram que a exposição a partículas poluentes, também associadas às mudanças climáticas, podem, assim como o cigarro, tornar cancerígenas células das vias aéreas.
Segundo o estudo, o material particulado em suspensão — partículas sólidas e líquidas na atmosfera — decorrentes do escapamento de veículos e da fumaça de combustíveis fósseis pode causar câncer de pulmão de células não pequenas, o tipo mais comum, em pessoas que têm mutações nos genes EGFR e KRAS. A pesquisa foi realizada com meio milhão de pessoas na Inglaterra, na Coreia do Sul e em Taiwan.
"As mesmas partículas no ar que derivam da combustão de combustíveis fósseis, exacerbando as mudanças climáticas, estão impactando diretamente a saúde humana por meio de um importante e anteriormente negligenciado mecanismo causador de câncer nas células pulmonares", contou Charles Swanton, diretor do Francis Crick, na apresentação do estudo, durante o Simpósio Presidencial da Esmo, o mais importante evento do congresso.
"O risco de câncer de pulmão causado pela poluição do ar é menor do que pelo fumo, mas não temos controle sobre o que todos respiramos. Globalmente, mais pessoas estão expostas a níveis inseguros de poluição do ar do que a produtos químicos tóxicos na fumaça do cigarro, e esses novos dados ligam a importância de abordar a saúde climática para melhorar a saúde humana."
Biópsia líquida com 93% de acurácia
Independentemente do tipo de câncer, quanto mais cedo for diagnosticado, melhores as chances de um tratamento eficaz. Há mais de uma década, pesquisadores têm investigado o potencial da biópsia líquida para detectar sinais de malignidade e, assim, atacar as células doentes precocemente. Hoje, há testes de sangue em desenvolvimento para mais de 50 tumores — eles indicam, por meio de sequências de DNA tumorais circulantes, a localização da doença.
No congresso anual da Sociedade Europeia de Oncologia Médica (Esmo), um estudo mostrou que o exame de sangue apresentou 93% de acurácia. O estudo Pathfinder, do Centro de Câncer Memorial Sloan Kettering, nos Estados Unidos, foi realizado com amostras de 6.290 pessoas com mais de 50 anos, não diagnosticadas com a doença, mas em alto risco.
O teste detectou um sinal de câncer em 1,4% participantes (92), sendo que 35 casos foram confirmados de imediato. Desses, 71% eram tipos de tumores que não são rastreados por exames de rotina, como de pâncreas e ovário, que costumam ser detectados já em fases avançadas. Do total, 48% receberam diagnóstico nos estágios 1 ou 2, quando o tratamento é mais eficaz. Além disso, 73% dos positivos só foram identificados pelos exames tradicionais três meses depois.
Já entre os 98,6% participantes cujo teste não apontou sinal de câncer, o índice de falso negativo foi de menos de 1%. "Os resultados são um primeiro passo importante para os testes de detecção precoce do câncer porque mostraram uma boa taxa de detecção para pessoas que tinham a doença e uma excelente taxa de especificidade para aqueles que não tiveram câncer", explicou, na apresentação, Deb Schrag, autora sênior do estudo. Não se sabe, ainda, o impacto do diagnóstico feito pelo exame de sangue na sobrevida dos pacientes, o que será avaliado ao longo do tempo.
Comentando o estudo, Fabrice André, presidente científico do congresso, afirma que são necessárias mais etapas antes que a biópsia líquida seja reconhecida como método diagnóstico. "Precisamos de ensaios comparativos em todos os tipos de câncer para descobrir se um teste de detecção precoce afeta a morbidade e a mortalidade. Também precisamos saber como os testes beneficiam os pacientes e como discutir os resultados com eles", destaca.
Brasileiros focam em efeito colateral da químio
Um estudo brasileiro do Grupo Oncoclínicas apresentado no congresso da Sociedade Europeia de Oncologia Médica (Esmo) mostrou resultados positivos no tratamento da neuropatia periférica, um dos efeitos colaterais mais comuns da quimioterapia. Essa condição consiste na perda de sensibilidade nas extremidades do corpo, como pés e/ou mãos.
"Como não há alternativas terapêuticas contra a neuropatia periférica atualmente, essa pesquisa tem uma importância ainda maior, pois pode mudar a qualidade de vida de muitos pacientes", diz a líder do estudo, Mariane Fontes. A primeira fase do estudo, que foi apresentada no congresso, envolveu 24 pessoas nas unidades de Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Minas Gerais e Pernambuco do Oncoclínicas.
Na pesquisa, todos os pacientes receberam o medicamento tópico, feito a partir de uma molécula chamada PSP neuro serum. O remédio foi passado nas mãos dos participantes e, por meio de um teste chamado monofilamento, que mede a sensibilidade, os cientistas perceberam melhora em 44% deles.
A segunda parte do estudo será realizada com uma população maior, dividida em dois grupos: um receberá o medicamento, enquanto o outro ficará com placebo. "É importante encontrarmos medicamentos que tratem da neuropatia, que é induzida por vários tipos de quimioterápicos. A resposta positiva, em todos os aspectos, do estudo que estamos desenvolvendo é uma esperança para os pacientes que precisam passar pelo tratamento de câncer, garantindo, assim, mais qualidade de vida", destaca Mariane Fontes. Atualmente, os pesquisadores estão selecionando e recrutando os voluntários.