Distúrbio comum caracterizado pela obstrução parcial ou completa das vias aéreas ao dormir, a
apneia obstrutiva do sono (AOS) pode provocar mais do que uma sensação de noite mal-dormida. Três estudos
recentes apresentados no Congresso Internacional da Sociedade Respiratória Europeia (ERS) em Barcelona, na
Espanha, encontraram associações entre o transtorno e o risco elevado de cânceres, declínio cognitivo e
trombose.
Acredita-se que a AOS afete pelo menos 7% a 13% da população. Pessoas com sobrepeso ou
obesidade, diabetes, que fumam ou consomem grandes quantidades de álcool correm maior risco. Segundo Andreas
Palm, autor sênior do estudo que associou a apneia à maior probabilidade de desenvolvimento de tumores
malignos, pesquisas anteriores haviam traçado essa relação. Porém, não estava claro se isso se devia à AOS
ou a fatores de risco de vários tipos de câncer, como estilo de vida e doenças cardiometabólicas.
Para obter um cenário mais claro, a equipe da Universidade de Uppsala, na Suécia, analisou os
prontuários de 62.811 pacientes do distúrbio e cruzou as informações com fatores que pudessem afetar os
resultados, como condições socioeconômicas. Também relacionaram dados de 2.093 pacientes com AOS ao
diagnóstico de câncer até cinco anos antes da detecção da apneia, comparando com um grupo controle de 2.093
pessoas com o distúrbio respiratório, mas sem doenças oncológicas.
Os pesquisadores, então, mediram a gravidade da AOS pelo índice de apneia e de hipopneia
(IAH), que calcula o número de episódios durante o sono, ou pelo índice de dessaturação de oxigênio (ODI),
que identifica quantas vezes por hora os níveis de oxigênio no sangue caem em pelo menos 3% por 10 segundos
ou mais. "Descobrimos que os pacientes com câncer tinham AOS um pouco mais grave. Em uma análise mais
aprofundada dos subgrupos, o índice de dessaturação foi maior em pacientes com câncer de pulmão (38% versus
27%), câncer de próstata (28 versus 24) e melanoma maligno (32 versus 25)", disse Palm.
O médico ressalta que o estudo não pode afirmar que a AOS causa câncer, apenas que está
associada a ele. A principal força da pesquisa, segundo os autores, é o grande tamanho e a alta qualidade
dos dados sobre diagnóstico de câncer e AOS.
Embora não se saiba exatamente como a AOS pode aumentar o risco de câncer, médicos começam a
levantar teorias que trazem uma relação de causa e efeito. "A hipoxemia crônica (baixo nível de oxigênio no
sangue) e o sono fragmentado são mecanismos pelos quais acredita-se que a apneia obstrutiva do sono
contribua para o desenvolvimento do câncer", afirma Tetyana Kendzerska, pesquisadora da Divisão de
Respirologia da Universidade de Ottawa, no Canadá. Ela é um dos autores de um estudo realizado no país
norte-americano que encontrou um risco 15% maior de tumores malignos em pessoas com AOS, sendo 30% mais
elevado no caso de hipoxemia grave.
Para muitos pesquisadores, o bloqueio das vias aéreas poderia promover um processo chamado
neovascularização, ou seja, o desenvolvimento de novos vasos sanguíneos, que são essenciais para o
crescimento de tumores. Um estudo com modelos animais publicado na revista Cancer Research constatou que,
nos camundongos com tumores que foram colocados em ambientes simulando os efeitos da apneia do sono, o
câncer progrediu muito mais rápido, comparado aos roedores não privados de oxigênio.
Um outro estudo apresentado no congresso internacional pelo professor Wojciech Trzepizur, do
Hospital Universitário de Angers, na França, mostrou que pacientes com AOP mais grave tinham maior
probabilidade de desenvolver tromboembolismo venoso (TEV). Das 7.355 pessoas acompanhadas por mais de seis
anos, 104 desenvolveram o problema.
"Esse é o primeiro estudo a investigar a associação entre apneia obstrutiva do sono e a
incidência de tromboembolismo venoso", disse Trzepizur, em nota. "Descobrimos que pacientes que passavam
mais de 6% da noite com níveis de oxigênio no sangue abaixo de 90% do normal tinham um risco quase duas
vezes maior de desenvolver TEVs em comparação a pessoas sem privação de oxigênio."
Duas perguntas para...
Paulo Marsiglio Neto, especialista em otorrinolaringologia e em medicina do sono das clínicas OtorrinoDF e
Medsono
Embora não tracem uma relação de causa e efeito, os estudos são fortes o suficiente para sugerir que a
apneia obstrutiva do sono pode impactar o risco de câncer, declínio cognitivo e trombose?
Há vários anos são realizadas pesquisas relacionadas a esses temas, e os resultados
demonstrados nos sumários dos artigos apresentados endossam cada vez mais a convergência entre a apneia
obstrutiva do sono e suas consequências vasculares, neurológicas e cancerígenas. Embora essa relação
encontrada seja considerável, isso não quer dizer que a apneia do sono provoque diretamente tais consequências
clínicas, mas trata-se de um alerta significativo para que possamos iniciar uma abordagem preventiva.
Quais os mecanismos biológicos que poderiam explicar essas associações?
As consequências da AOS são, em grande parte, mediadas por quedas/flutuações crônicas do
oxigênio sanguíneo (hipoxia) e fragmentação do sono, que geram estresse oxidativo e processo inflamatório
crônico. A ativação do fator transcripcional de hipóxia, uma proteína-chave na homeostase do oxigênio, provoca
a ativação de muitas outras moléculas relacionadas às vias de reação pró-inflamatórias, inclusive o fator de
necrose tumoral alfa. A desregulação e a superexpressão desse fator por hipóxia ou alterações genéticas têm
sido fortemente implicadas na biologia do câncer, bem como inúmeras outras patologias, especificamente as
disfunções endoteliais que, consequentemente, favorecem fenômenos vasculares tromboembólicos e doenças
cérebro-degenerativas.
Mudanças no estilo de vida
European Respiratory Society
"Esses três estudos mostram associações preocupantes entre apneia obstrutiva do sono e doenças
importantes que afetam a sobrevivência e a qualidade de vida. Os dados apóiam a relevância da apneia do sono
no câncer, no tromboembolismo venoso e na saúde mental. Embora não possam provar que a AOS causa qualquer um
desses problemas de saúde, as pessoas devem estar cientes desses vínculos e devem tentar fazer mudanças no
estilo de vida para reduzir o risco de AOS, por exemplo, mantendo um peso saudável. Se houver suspeita de
apneia, o diagnóstico definitivo e o tratamento devem ser iniciados."
Winfried Randerath, médico do Hospital Bethanien da Universidade de Colônia, na Alemanha, e chefe do grupo
de especialistas da Sociedade Respiratória Europeia em distúrbios respiratórios do sono
Risco de maiores prejuízos para idosos
No Centro de Investigação e Pesquisa do Sono (CIRS) da Universidade de Lausanne, na Suíça,
pesquisadores encontraram um declínio maior na capacidade de processamento mental durante um período de cinco
anos que, segundo eles, está associado à apneia obstrutiva do sono (AOS). Os cientistas, que apresentaram o
estudo no Congresso Internacional da Sociedade Respiratória Europeia (ERS), fizeram o estudo com pessoas com
65 anos ou mais da população geral de Lausanne.
Um total de 358 participantes fizeram uma polissonografia para examinar a presença e a
gravidade da AOS quando ingressaram no estudo. Entre 2009 e 2013, a capacidade de processamento mental também
foi testada, e outra avaliação cognitiva ocorreu cinco anos depois. Os testes avaliaram a função cognitiva
global (conhecimento e habilidades de raciocínio), velocidade de processamento (tempo gasto para entender e
reagir à informação), função executiva (capacidade de organizar pensamentos e atividades, priorizar tarefas e
tomar decisões), memória verbal, linguagem e percepção das relações espaciais entre objetos.
"Descobrimos que a AOS e, em particular, os baixos níveis de oxigênio durante o sono devido à
AOS, estavam associados a um maior declínio na função cognitiva global, velocidade de processamento, função
executiva e memória verbal", disse Marchi, em nota. "Também descobrimos que pessoas com 74 anos ou mais e
homens estavam em maior risco de declínio cognitivo relacionado à apneia do sono em alguns testes cognitivos
específicos."
Segundo o geriatra Otávio Castello, fundador e ex-presidente da Associação Brasileira de
Alzheimer da regional DF, embora ainda não exista uma prova de que a AOS cause deterioração cognitiva,
descobertas científicas cada vez mais frequentes indicam que o distúrbio pode piorar a saúde mental. "Uma
pergunta que ainda não está respondida, por exemplo, é se a apneia do sono desencadearia doença de Alzheimer",
diz.
De acordo com Castello, a condição provoca, noite após noite, um sono que não restaura. "Isso é
muito sério porque submeter alguém a um estado cronicamente de sono não restaurador traz uma série de
implicações no funcionamento biológico do indivíduo", diz. "A AOS é um problema de saúde pública e, embora
muito importante, é pouco reconhecida e tratada."