Os estudos genéticos focam, majoritariamente, em populações europeias, apesar de o continente não abrigar a maior parte da população mundial. O resultado é que se produziu, ao longo dos anos, muito conhecimento sobre essas populações ao passo que abriu-se uma lacuna em relação a outras. A cientista mineira Marla Mendes empreende esforços para mudar esse cenário. Ela defendeu, recentemente, tese baseada em estudos genéticos da população brasileira, em especial das cidades de Bambuí (MG), Pelotas (RS) e Salvador (BA); da Índia; e de populações andinas.
A pesquisadora alerta que o desequilíbrio na produção de conhecimento genético impede o desenvolvimento de estudos que poderiam resultar em benefícios para um número maior de pessoas.
A genética é um campo científico promissor que ajuda, por exemplo, na predição de doenças e também na elaboração de tratamentos mais eficazes. Mas, para que os avanços da pesquisa genética possam atingir um número maior, elas devem se basear na diversidade: tanto no perfil dos pesquisadores, que devem ser oriundos de etnias diversas, quanto do objeto - ampliando as populações estudadas.
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"As únicas populações para as quais temos estudos suficientemente grandes são as europeias. Não temos muitos estudos das populações africanas, americanas, asiáticas", afirma a pesquisadora que, atualmente, é pesquisadora no Hospital Sick Kids, em Toronto no Canadá.
A lacuna nesse campo de estudo é sabida pela comunidade científica, mas pouco se avançou em pesquisas sobre populações indianas, africanas e sul-americanas. "O interessante é que a comunidade científica inteira sabe disso. Em todo mundo, temos artigos científicos que apontam que os estudos devem ser repetidos em populações diferentes da europeia", avalia.
Ao olhar para o conjunto dos estudos de genética, a pesquisadora alerta para a lacuna - qualquer população que não seja europeia é sub-representada em estudos genéticos, o que inclui as mais populosas, como a indiana, e as miscigenadas, como a brasileira.
Diversidade genética
O Genoma Brasil é uma iniciativa importante para realizar estudos genéticos da população brasileira, porém a pesquisadora aponta que é preciso avançar. Ainda há um longo caminho a ser percorrido para entender a formação genética da população brasileira.
"No Brasil a gente tem um grande gap de olhar para a nossa própria genética e dizer como isso pode afetar nossa vida. Quando a gente pensa em medicina de precisão, que está sendo muito bem vista fora do Brasil, pensamos que é bem distante da nossa realidade. A gente não conhece a nossa própria genética", afirma.
Ela defende também a importância da diversidade entre os cientistas, que o campo de conhecimento não seja construído apenas por cientistas de ancestralidade europeia. "A gente precisa ver cientistas africanos, cientistas americanos, latinos publicando, podendo fazer pesquisa e podendo olhar para a sua própria genética"
Marla integrou a equipe do Laboratório de Diversidade de Genética Humana do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), liderado pelo professor Eduardo Tarazona. Ela destaca iniciativas de extensão, o projeto Mosaico Transaltional Genomics, que procura aplicar estudos genéticos na população brasileira."É um laboratório em que a gente busca mostrar a diversidade genética brasileira, como está representado no meu trabalho."
A pesquisa
Na tese "Mosaico genético além das populações europeias", elaborada no Programa de Pós-graduação em Genética do ICB/UFMG, Marla conta, a partir de uma revisão bibliográfica, a história da população nas Américas, desde a migração pelo canal da Behringer, passando pela conquista da América do Norte e da América do Sul pelos europeus.
A pesquisadora também estuda o impacto da seleção natural depois da chegada dos europeus, ou seja as marcas no código genético devido ao ambiente ao qual os seres humanos estão submetidos. "Temos ambientes bem únicos das Américas, as altitudes dos Andes, os trópicos úmidos na Amazônia", exemplifica.
O objetivo do estudo foi demonstrar como se formou a arquitetura genética dos americanos. "A arquitetura genética é formada pelos primeiros americanos que chegam, pelas posteriores ondas de migração, tanto europeia quanto africana, e também por todos os sinais de seleção natural que as Américas deixam na gente."
O estudo também foca no oeste da América do Sul, onde ficam localizados os Andes e a Amazônia. "Aquela região, foi o berço da civilização sulamericana. Onde os europeus encontraram grandes civilizações quando chegaram aqui".
Marla estuda a influência de impérios famosos, como o Inca. "As populações andinas, que moram nos Andes, são bem homogêneas, em contrapartida, as populações da Amazônia são bem diferenciadas. A gente imaginava que era devido ao Império Inca, que unia todo esse povo, com estradas construídas, mas quando fizemos a análise genética, chegamos a resultados muito anteriores. Então impérios menos famosos já eram muito importante para esse povo"
Também faz uma varredura genômica no genoma indiano, em busca das marcas da seleção natural. Esse conhecimento sobre as populações europeias é bastante disseminado, inclusive com sites em que se pode pesquisar as variantes genéticas e como elas foram influenciadas pela seleção natural. Porém, não há nada disso para os indianos, apesar de serem uma das maiores populações do mundo.
Por fim, a pesquisadora faz um estudo sobre Polygenic risk score (pontuação de risco poligênico). "É uma forma de pontuar, quando nos referimos a doenças influenciadas por vários genes, variantes e mutações. Pontuamos e conseguimos fazer um somatório. Para cada pessoa, em relação a uma doença específica, posso dizer baseado na genética tanto mais chance de desenvolver determinada doença", diz.
A pontuação de risco poligênico pode ser usado para saber, por exemplo, se geneticamente a pessoa tem maior o menor propensão de ser obeso. "É uma ferramenta poderosíssima. Posso fazer isso para qualquer doença genética, posso pegar diabetes numa criança, por exemplo, e dizer que essa criança tem três vezes mais chances de desenvolver ou não o diabetes."
Apesar dos benefício da ferramenta, ela não pode ser usada com precisão em outras populações que não as europeias. "Como consigo fazer essa pontuação por meio de estudos de associação, que vão me dizer o quanto cada variante está associada à determinada característica". Como os estudos de associação são baseados em populações europeias, ao aplicá-los corre-se o risco de obter "viés gigantesco".
Para quantificar esse viés, Marla tomou como referência estudo genético da população de Bambuí, Pelotas e Salvador, que têm diferentes níveis de miscigenação para calcular o quanto a miscigenação vai influenciar na acurácia do PRS.
Os estudos de Fernanda Kehdy, pesquisadora que também integrou o Laboratório de Diversidade Genética, apontaram que que Bambuí tem 78,5% ancestralidade europeia, 15% africana, 6,7% povos nativos. Salvador tem 42,9% europeus, 50,8% africanos e 6,4% de povos nativos. Em Pelotas sãp 76,1% europeus, 15,9% africanos e 8% de povos nativos.
A cientista
Marla Mendes, de 30 anos, nasceu em Belo Horizonte, mas viveu a maior parte da vida em Pequi e Contagem. Ela é filha de mãe solo, faxineira da Prefeitura de Contagem. Formou-se biologia na UFV campus Florestal em 2016, com um periodo sanduíche na Universidad de lles illes Ballears na Espanha, pelo programa Ciência sem Fronteiras.
Posteriormente, realizou o mestrado e doutorado no laboratírio de Diversidade Genética Humana da UFMG, sob a supervisão do professor Eduardo Tarazona e co-supervisao de Victor Borda. Durante o doutorado realizou um período de intercâmbio pelo programa CAPES-print, na Universidade de Toronto sob a supervisão de Esteban Parra. Atualmente, tem bolsa como pesquisadora no Hospital Sick Kids de Toronto, sob a supervisao de Steve Scherer.