GRÉCIA

Medusa não foi monstro, mas sim vítima de estupro, diz escritora sobre o mito grego

Durante séculos, nossa visão de alguns dos arquétipos femininos mais importantes de nossa civilização foi encorajada por autores e vozes masculinas

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A escritora Natalie Haynes se dedica a estudar os mitos gregos pela perspectiva feminina

Nem Medusa era tão ruim, nem Pandora tinha uma caixa. E Penélope repreendeu Ulisses por fazê-la esperar tanto tempo. Durante séculos, nossa visão de alguns dos arquétipos femininos mais importantes de nossa civilização foi encorajada por autores e vozes masculinas.

E segundo essas vozes, Medusa encarna o mal, Pandora liberou os males do mundo e Penélope era uma esposa tão leal que esperou pacientemente pelo retorno do marido, tecendo para enganar o tempo e seus pretendentes.

Mas Natalie Haynes, graduada em Filologia Clássica pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e considerada uma autoridade mundial em literatura clássica, decidiu revisitar esses mitos a partir de uma perspectiva silenciada há centenas de anos: a feminina.

Autora de seis livros, em 2021 publicou Os Mil Navios (em tradução livre), que narra a lendária Guerra de Tróia e suas terríveis consequências por meio das histórias de várias mulheres.

Situado em uma Tróia reduzida a cinzas após dez anos de guerra sangrenta, o livro fala desde as troianas - cujos destinos estavam nas mãos dos gregos - até a princesa amazona que lutou contra Aquiles, passando por Penélope ou as três deusas que iniciaram a disputa.

Além de escritora, Haynes está à frente do programa da BBC Natalie Haynes defende os clássicos, que tem várias temporadas, e colabora com veículos de imprensa britânicos, como The Times, The Independent, The Guardian e The Observer.

A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com ela no âmbito do HAY Festival Querétaro, que acontece na Cidade do México entre 1 e 4 de setembro. Neste mês será lançado seu último livro focado em Medusa, ainda sem versão em português.

BBC - A Guerra de Tróia é muito diferente para as mulheres e para os homens?

Natalie Haynes - Acho que realmente é.

Obviamente, a grande narrativa que temos da Guerra de Tróia é Ilíada de Homero, mas muitas vezes as pessoas se esquecem - tenho que me lembrar às vezes - que Ilíada se passa em apenas dois meses, o último ano daquele conflito, que durou no total cerca de uma década.

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Haynes, em seu último livro, faz uma resenha da Guerra de Tróia, famosa por seu cavalo, mas foca no papel da mulher nesse conflito

Isso é tudo. Apenas 60 dias. Portanto, há muito a dizer sobre o que aconteceu antes e depois.

E como Ilíada se concentra intensamente no campo de batalha, também nos esquecemos das consequências da guerra e do que acontece fora dela.

BBC - E precisamente o seu livro conta essa guerra de um ponto de vista muito diferente daquele do campo de batalha...

Haynes - Sim, Ilíada se concentra sobretudo nos avanços e retrocessos dos dois lados da guerra. E eu queria contar o que acontece à margem de uma guerra e não apenas em seu epicentro.

O fio condutor são as mulheres troianas e as personagens femininas em geral fora do campo de batalha.

Eu queria mostrar o alcance épico das mulheres, mostrar as deusas que estavam envolvidas na guerra, as mulheres gregas esperando em casa por seus homens.

Nós nos concentramos tanto na experiência dos homens em uma guerra - muitas vezes com razão, porque eles são os participantes ativos - que isso às vezes nos priva da oportunidade de contar o que as mulheres vivenciam. Aquelas que lutam, como Pentesileia, e aquelas que sofrem os danos terríveis causados por essas disputas.

Acho que Eurípides percebeu, muito brilhantemente, que se você quer quebrar o coração das pessoas, precisa sair do campo de batalha. Ele escreveu oito tragédias sobre a Guerra de Tróia, sete delas com personagens femininas no título.

Ele entendeu que tinha que ir, por exemplo, onde Efigênia é sacrificada para que os gregos possam chegar à Tróia. Ou entre as mulheres troianas que sobreviveram enquanto atrás delas, no horizonte, estão os restos incendiados de sua cidade.

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A história de Helena, cujo sequestro por Paris dá início à Guerra de Tróia, inspirou diversos artistas, um deles foi o pintor francês Jacques Louis.

BBC - A Guerra de Tróia foi vencida pelos gregos, mas todos realmente perderam?

Haynes - Há muita infelicidade nesta guerra.

E achei muito importante mostrar que não existe um mundo onde quem ganha fica feliz e quem perde fica triste.

Se pensarmos que quando Ulisses - um dos personagens mais conhecidos - volta para casa vitorioso, ele massacra mais de 100 homens e enforca 12 mulheres em um pedaço de corda. Esse é o comportamento de um herói ou alguém com transtorno do estresse pós-traumático?

Na verdade, a guerra foi muito devastadora para todos os envolvidos, vencedores e perdedores. E isso, de certa forma, era mais óbvio entre as mulheres do que entre os homens, porque eles tendem a morrer lutando, então a história deles chega a um fim abrupto.

Mas, por mais trágico que isso seja, muitos de nós talvez considerássemos pior ser escravizado, estuprado várias vezes e finalmente morto. É o que acontece com as mulheres nessa história.

BBC - Provavelmente a personagem feminina mais famosa da Grécia antiga é Helena de Esparta, Helena de Tróia, cujo rapto por Paris inicia a guerra, certo?

Haynes - Ela é famosa em todo o mundo... exceto na Grécia, onde se você perguntar quem é o personagem mais famoso da Guerra de Tróia, as pessoas dizem Hércules.

Muitas vezes pensamos em Helena como uma personagem bastante passiva, mas Homero certamente não a via dessa maneira.

Embora em Ilíada ela apareça como uma espécie de brinquedo de Afrodite, em Odisseia ela é um personagem muito mais forte, com muito mais escolhas e ações.

BBC - Penélope é outra das grandes personagens femininas dessa história...

Haynes - Penélope é um arquétipo pelo qual os gregos estavam particularmente interessados: a esposa leal que nunca desiste e é dedicada ao marido desaparecido.

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A autora inglesa oferece uma versão dos personagens da mitologia grega completamente diferente daquela que vimos e lemos até agora

Agamenon, no último livro de Ilíada, diz que os próprios deuses vão compor uma canção para celebrar Penélope, porque tem ciúmes de que Ulisses volte para casa com uma esposa fiel e não com quem o mata com um machado (como aconteceu com ele, que foi decapitado por sua esposa, Clitemnestra).

Fico fascinada pelo fato de Penélope ser considerada a esposa ideal por homens que realmente não sabem como ela era.

BBC - Por quê? Como ela era?

Haynes - Não sei se posso responder isso com certeza. Em Odisseia, quando conhecemos Penélope, ela está literalmente velada, ela tem um véu sobre o rosto.

E, repetidamente, ao longo do poema, somos informados de que alguém coloca uma ideia em sua cabeça, envia-lhe um sonho.

Ela e Ulisses não se encontram novamente até o livro 23, então é muito difícil dizer quem é Penélope em Homero.

O que posso dizer é que minha versão de Penélope está mais próxima daquela que vemos em Heroides, de Ovídio, escrito no século I aC.

BBC - Por quê?

Haynes - Vou dar um exemplo: em Ilíada há um livro que fala de um ataque noturno em que Ulisses mata um espião, o rei dos trácios e rouba seus cavalos. Isso é narrado como um episódio de grande coragem.

Mas, em Ovídio, quando Penélope conta o que aconteceu, em forma de carta a Ulisses, ela lamenta que ele não tenha pensado nela e no filho quando embarcou nessa missão maluca, além de perguntar se ele se lembrava de que ela estava esperando por ele.

De repente, você percebe que o que parece um ato heroico de uma perspectiva, de outra - o de Penélope - parece uma traição.

A primeira vez que li aquele poema de Ovídio pensei: "Essa é minha garota".

E é por isso que a parte de Os Mil Navios sobre Penélope está escrita em forma de cartas.

BBC - A história por trás da Medusa também é muito diferente do que costumamos pensar, certo? Medusa encarna em nosso imaginário um monstro terrível e, no entanto, ela também era uma vítima.

Haynes - Sim. As pessoas pensam na Medusa como o monstro arquetípico, mas ela foi vítima de estupro.

Ela foi primeiro estuprada por um deus masculino (Poseidon) e depois punida por uma deusa feminina (Athena) por ter sido agredida sexualmente em seu templo.

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A autora considera que Medusa não é o monstro, mas sim uma vítima do mundo em que vivia

Escrever sobre Medusa para o meu livro O Jarro de Pandora foi muito terapêutico. Realmente gostei de poder dizer às pessoas: "Veja como tratamos essa personagem que de fato não fez absolutamente nada de errado".

Quando terminei o capítulo sobre Medusa, ainda estava muito zangada com a forma como a história a trata, que decidiu priorizar partes muito específicas de sua trajetória.

BBC - Por que você acha que a versão do mito da Medusa que chegou até nós não fala que ela foi estuprada e que também foi punida por sofrer agressão sexual?

Haynes - Acho que, sem nem pensar, tendemos a ficar do lado de homens aventureiros, porque tantas histórias em todas as culturas nos convidam a fazer isso.

Até há relativamente pouco tempo, apenas algumas de nossas histórias pediam para nos identificarmos com as mulheres.

As personagens femininas tiveram um papel muito importante nas narrativas antigas, mas depois ficaram perdidas por muito tempo.

Quase todos nós crescemos com Perseu como nosso herói, o bravo homem que salva Andrômeda de um monstro marinho.

Mas para salvar Andrômeda, Perseu precisa primeiro pegar a cabeça de Medusa, e isso imediatamente a desumaniza.

Não pensamos na Medusa como uma górgona, mas como a dona da cabeça que precisamos.

As pessoas têm de ser lembradas que ela é uma das três irmãs, que choram quando ela é tirada delas. Medusa não fez nada de errado.

Na verdade, seu poder de transformar em pedra quem olha em seus olhos só é usado após sua morte, justamente por Perseu. Ela não usa esse poder quando está viva.

E, no entanto, tendemos a olhar para isso com horror.

BBC - Existe também uma leitura distorcida de Pandora, a primeira mulher segundo a mitologia grega? Ela é culpada por ter aberto a caixa que os deuses lhe deram e que continha todo o mal, liberando assim todos os infortúnios que afligem o mundo e os seres humanos.

Haynes - Sim, Pandora também foi mal compreendida.

Acho que a história dela foi influenciada pela história de Eva, narrada no livro de Gênesis, da Bíblia.

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Haynes sustenta que Pandora é outra personagem incompreendida

Para começar, Pandora não tem uma caixa. De fato, na arte antiga ela nunca é retratada com qualquer tipo de caixa, jarra ou receptáculo de qualquer tipo.

Nos tempos antigos, a história de Pandora estava cheia de nuances e versões.

Em algumas, como no poema de Hesíodo, ela tem uma garrafa que contém os males do mundo, mas em outros ela está cheia de coisas bonitas. Às vezes é o marido que abre o pote, outras vezes é ela. Ou ela simplesmente não tem nada em suas mãos.

BBC - E por que todas essas nuances desapareceram?

Haynes - Porque surgiu a história de Eva, que basicamente conta que uma linda mulher fez com que todos nós fôssemos expulsos do paraíso para sempre.

Sua história se popularizou e influenciou a narrativa sobre Pandora, que nos tempos antigos não era considerada um ser maligno.

Em grego, Pandora era "kalòn kakòn", algo bom e ruim, bonito e feio, gentil e mau. Pandora é boa e má ao mesmo tempo, e essa natureza dupla em grego a torna moralmente neutra.

No entanto, a história de Eva é muito mais contundente. E à medida que o cristianismo prolifera, a história de Pandora simplesmente se funde com a de Eva. E, infelizmente, seu significado como personagem da mitologia grega é negligenciado.

Mais tarde, no início do século 16, Erasmo de Rotterdam cometeu um erro e traduziu erroneamente a palavra "pithos" - que significa jarro em grego - como caixa.

E isso piorou as coisas, porque um frasco é inerentemente frágil, mas uma caixa é algo que exige esforço para abrir.

A partir daí, muito rapidamente, Pandora começa a ser representada na arte com uma caixa. Primeiro com um normal e depois, por décadas, com uma espécie de cofre com grandes alças, para o qual Pandora teve que gastar horas para abrir e liberar todo o mal que havia dentro.

BBC - Por que os mitos gregos ainda são válidos?

Haynes - Os mitos são um espelho de nós e mudam com o tempo porque nós mudamos.

As gerações redescobrem os mitos gregos porque eles são universais.

Uma das coisas realmente importantes sobre eles é que os seres humanos estão no centro. Até os deuses são muito humanos: petulantes como crianças, mas muito humanos, e costumam se envolver com homens e mulheres.

O ser humano é a unidade monetária dos mitos gregos e das tragédias gregas em particular. Nos mitos nórdicos, por exemplo, há coisas como uma árvore gigante. Eu amo aquela árvore gigante, mas não sinto que ela fale diretamente comigo.

Os mitos gregos sim, e acho que é por isso que eles nunca sairão de moda.


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