Na região mais meridional do planeta, existe um gigante de gelo adormecido. Assim tem permanecido nos últimos milhares de anos e, até pouco tempo atrás, acreditava-se que nada o faria acordar. Porém, cientistas descobriram que ele está despertando. O aquecimento global começa a acordar o maior manto gelado do planeta. Se nada for feito para evitar que o aumento de temperatura ultrapasse os 2ºC, como definido pelo Acordo de Paris, 52m de água congelada poderão derreter. A consequência mundial seria catastrófica.
Um estudo publicado, ontem, na revista Nature confirma o que já havia sido constatado em 2020: o manto de gelo da Antártida Oriental (Eais), na parte leste do continente gelado, sofre mais perturbação do que se imaginava. Agora, porém, os pesquisadores calcularam como o derretimento impactaria o aumento do nível do mar, um problema que já está em curso devido ao descongelamento de outras geleiras. Até 2300, o desmantelamento do gigante resultaria em um acréscimo de volume entre 1,5m a 3m nos oceanos. A situação em 2500 seria ainda pior: 5m a mais. Entre outras consequências, ilhas e países inteiros seriam engolidos.
O Eais compreende 80% de todo o gelo do planeta. "É tão grande que, em algumas partes, a espessura chega a 4km", conta Chris Stokes, professor da Universidade de Durham, no Reino Unido, e principal autor do estudo. Se, hipoteticamente, o manto derretesse da noite para o dia, o mar amanheceria 52m mais profundo. "Claro, isso não vai acontecer", esclarece Stokes. Mas o descongelamento contínuo impulsionado pelo aumento de temperatura adicionará mais água do que a costa dos continentes pode suportar.
"Estávamos interessados em saber o quão estável é o Eais porque, por muito tempo, os cientistas acreditaram que, comparado à Antártida Ociental e à Groenlândia, haveria maior estabilidade. Então, talvez, não precisássemos nos preocupar tanto com ele em um cenário de aquecimento", diz o pesquisador. "Mas, no estudo, olhamos para ocasiões do passado em que o clima estava apenas um pouco mais quente que agora e vimos a reação do Eais. Descobrimos que ele retraiu e que, em alguns casos, essa retração foi dramática, contribuindo com um aumento no nível do mar de 5m a 10m."
Instabilidade
A lição do passado é a de que o manto de gelo não é tão estável como se pensava, destaca Stokes. Além disso, os pesquisadores analisaram observações de satélite que comprovaram: nas últimas décadas, houve uma diminuição visível da capa de gelo. "Aqui, temos alguns sinais alarmantes porque, enquanto a maior parte da camada gelada parece estável, algumas partes estão se retraindo e afinando, contribuindo para o aumento do nível do mar tanto quanto a Antártida Ocidental e a Groenlândia", destaca. Por isso, mesmo que apenas algumas partes do Eais vire água, isso será suficiente para agregar volume aos oceanos.
De acordo com Stokes, uma das conclusões mais importantes do estudo é a de que o destino do gigante gelado não está ainda definido. Simulações computacionais demonstraram que, em cenários de baixa emissão de gases de efeito estufa, que fazem a temperatura subir, provavelmente o Eais permanecerá intacto. Para isso, é preciso atingir as metas definidas no Acordo de Paris, em 2015: limitar o aquecimento a 2ºC e, preferencialmente, 1,5ºC, até o fim do século, tendo como base os níveis pré-industriais.
O problema é que, segundo a Organização Meteorológica Mundial, organismo das Nações Unidas, o ritmo atual das emissões aponta para um cenário de aumento entre 2,5ºC e 3ºC. Desde o início da industrialização, o globo está 1,1ºC mais quente, de acordo com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). "Alcançar e fortalecer nossos compromissos com o Acordo de Paris não apenas protegeria a maior camada de gelo do mundo, mas também retardaria o derretimento de outras grandes camadas de gelo, como a Groenlândia e a Antártida Ocidental, que são mais vulneráveis ao aquecimento global", destacou, em nota, Nerilie Abram, da Universidade Nacional da Antártida em Camberra (Austrália) e coautora do artigo.