Em todo o mundo, 80 milhões de pessoas sofrem de glaucoma, mal crônico que leva à perda progressiva da visão. De causas não completamente elucidadas, ele é tratado, hoje, tendo como foco o único fator de risco potencialmente modificável, a pressão ocular. Porém, mesmo as terapias mais avançadas nesse sentido não são capazes de evitar, sempre, a cegueira. Agora, um estudo sobre uma mutação genética que aumenta o risco de Alzheimer, enfermidade neurodegenerativa e uma das principais causas de demência, mostra que a variante pode proteger contra o problema oftalmológico. Segundo os autores, as descobertas abrem caminho para o combate direto à doença, com potencial de recuperação do nervo óptico.
O estudo, publicado na revista Immunity, baseia-se em uma importante descoberta de 2017, de que doenças neurodegenerativas, caracterizadas pela destruição de células do sistema nervoso central, têm em comum a variante APOE4 do gene Apolipoproteína E. Curiosamente, embora a variante eleve o risco de Alzheimer, ela também reduz o risco de desenvolvimento de glaucoma, descobriu, há dois anos, uma equipe de cientistas do Mass Eye and Ear e do Brigham and Women´s Hospital, nos EUA, liderados por Milica Margeta, professora e especialista em glaucoma.
A relação entre a mutação e seu efeito protetivo contra a doença oftalmológica, porém, ainda não havia sido compreendida. Agora, novamente sob a coordenação de Margeta, os pesquisadores das mesmas instituições descobriram como o APOE4 pode evitar o glaucoma. O estudo, feito com modelos animais, mostrou que um tratamento genético que visa a variante é capaz de prevenir a destruição dos neurônios associados à cegueira.
"Nossa pesquisa fornece uma maior compreensão do caminho genético que leva à cegueira irreversível no glaucoma e, mais importante, aponta para um possível tratamento para abordar a causa raiz da perda de visão", disse, em nota, Margeta. "Esse estudo mostra que a cascata da doença mediada pelo gene APOE é claramente prejudicial no glaucoma e que, quando você interfere nela geneticamente ou farmacologicamente, pode realmente interromper a doença."
No estudo, os cientistas tentaram induzir o glaucoma em camundongos modificados geneticamente para exibirem a variante APOE4. Apesar da pressão ocular elevada, esses animais não sofreram danos nas células ganglionares da retina, que são destruídas na doença. Para entender o processo, os pesquisadores fizeram um sequenciamento genético com objetivo de identificar, no cérebro dos animais, quais genes foram ativados e desligados em um tipo de célula do sistema imunológico chamado micróglia, que tem associação com o glaucoma.
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Inflamação
Embora a causa exata da doença não seja conhecida, acredita-se que o glaucoma é o resultado de um processo inflamatório microscópico no nervo óptico. Nos pacientes, a microglia está sempre ativada. Em tecidos saudáveis, essa importante célula protege os olhos e o cérebro, mas, em doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson, ela pode produzir moléculas tóxicas, incluindo uma chamada galectina-3, que destroem neurônios e outros grupos celulares.
No estudo, os cientistas observaram que, nos animais geneticamente modificados para exibirem a variante APOE4, a pressão ocular alta não conseguia fazer com que a micróglia deixasse de ser saudável e se transformasse numa célula potencialmente tóxica. Sem ser ativada, ela deixou de produzir a galectina-3 e, consequentemente, os neurônios foram protegidos. A conclusão foi que tentar inibir a fabricação dessa molécula pode evitar o glaucoma. Para reforçar a ideia, os pesquisadores avaliaram amostras de tecido ocular humano e viram que, nos pacientes com a cegueira progressiva e variante comum da APOE, essa substância estava aumentada. Porém, naqueles com a mutação APOE4, ela praticamente não era detectável.
"Essa foi uma descoberta impressionante e levou a testar se uma intervenção farmacológica poderia bloquear galectina-3, que poderia potencialmente tratar o glaucoma", conta o autor sênior do estudo, Oleg Butovsky, professor associado de neurologia na Escola de Medicina de Harvard. Os cientistas usaram inibidores de galectina-3, que podem ser derivados de fontes naturais e estão atualmente em ensaios clínicos para o tratamento da fibrose pulmonar.
O resultado foi que a injeção de inibidores de galectina-3 bloqueou a cascata da doença nos camundongos com glaucoma, e as células ganglionares da retina foram protegidas, mesmo com a pressão ocular elevada. "Nossas descobertas fornecem uma explicação de por que a APOE4 está associada a um risco reduzido de glaucoma e mostram que a via de sinalização da APOE é um alvo promissor para tratamentos neuroprotetores para essa doença. No entanto, ainda não sabemos por que o mesmo alelo é deletério na doença de Alzheimer, mas protetor em doenças neurodegenerativas oculares", diz Butovsky.
Regeneração
"O glaucoma é uma doença muito séria porque as perdas são permanentes, não é possível recuperar os danos. Todo o tratamento que temos hoje é para diminuir a pressão no olho, mas o que acontece dentro do órgão não se sabe", diz Jonathan Lake, diretor médico e oftalmologista do Grupo Opty. "Esse estudo abre um caminho para o tratamento da causa do glaucoma; é um passo importantíssimo. Nas fotos publicadas no estudo, podemos ver o crescimento e a regeneração das células", afirma, destacando que ainda é uma pesquisa preliminar, feita com animais. O especialista lembra que, por ser uma doença grave, é preciso monitorá-la frequentemente, especialmente no caso de pessoas com históric o familiar.
Segundo Milica Margeta, a equipe pretende, agora, pesquisar mais detalhadamente os inibidores de galectina-3 como tratamentos em potencial para o glaucoma, fazendo testes em outros modelos animais. Além disso, querem descobrir quais as abordagens mais minimamente invasivas para administrar a substância, seja via oral ou na forma de um gel de liberação lenta. Os cientistas já estão analisando o fluido ocular e amostras de soro de pacientes submetidos à cirurgia de glaucoma para identificar qual população seria beneficiada pelos inibidores de galectina-3. Os resultados darão o primeiro passo para ensaios clínicos, em humanos.
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Três perguntas para
Ramon Barreto, oftalmologista e especialista em retina do Visão Hospital de Olhos
Estudos anteriores já sugeriram associações entre glaucoma, Alzheimer e o gene APOE4. Qual seria a relação entre eles?
A superexpressão do APOE4 acarreta, de acordo com alguns estudos científicos, um maior risco de desenvolvimento do Alzheimer, porém reduziria o risco de dano glaucomatoso. Sabe-se que a APOE atua na regulação da homeostase (equilíbrio) das células da micróglia, que são células de suporte e proteção das células nervosas, tanto da retina quanto do sistema nervoso central. O dano glaucomatoso e consequente cegueira ocorrem quando temos a degeneração das células ganglionares, que são os neurônios responsáveis por transmitir os impulsos visuais dos fotorreceptores da retina até o cérebro.
Os mecanismos que levam ao glaucoma e à perda de visão por essa causa já são bem compreendidos?
Sabe-se que o glaucoma ocorre pela degeneração das células ganglionares. Mas o mecanismo exato que leva a essa degeneração ainda não está totalmente elucidado. O principal fator de risco para a degeneração das células ganglionares é o aumento da pressão intraocular. Porém, existem casos de dano glaucomatoso mesmo com a pressão ocular normal. Uma das explicações seria justamente o papel da APOE na homeostase nas células de sustentação e proteção desses neurônios, ou seja, nas células da glia, em especial na micróglia.
O estudo sugere uma abordagem genética para o tratamento do glaucoma. Embora ainda esteja na fase pré-clínica, há expectativas de que essa abordagem poderá beneficiar pacientes humanos?
Estudos têm demonstrado que, ao se ter como alvo a APOE, como também a galectina-3, teria-se uma proteção das células ganglionares da retina, evitando o seu dano, chamado também de apoptose, o que evitaria a perda de campo visual e a cegueira. Então, o desenvolvimento de medicamentos e terapia gênica nestes alvos poderia ser de grande valia no tratamento do glaucoma. Os resultados devem ser analisados sempre com cautela, pois ainda são estudos iniciais, testados em animais e não se sabe ainda se a resposta em humanos seria ou não similar. Por isso, é importante estudos futuros acerca desse tema.