genética

Terapia com gene consegue curar cegueira, mostra estudo

Em modelos animais, inibidor da ação de uma variante foi capaz de evitar a perda progressiva da visão que caracteriza o glaucoma. A mesma mutação está associada ao aumento de risco de Alzheimer, uma das principais causas da demência

Paloma Oliveto
postado em 17/08/2022 06:00
 (crédito: International Centre for Eye Health/Divulgação )
(crédito: International Centre for Eye Health/Divulgação )

Em todo o mundo, 80 milhões de pessoas sofrem de glaucoma, mal crônico que leva à perda progressiva da visão. De causas não completamente elucidadas, ele é tratado, hoje, tendo como foco o único fator de risco potencialmente modificável, a pressão ocular. Porém, mesmo as terapias mais avançadas nesse sentido não são capazes de evitar, sempre, a cegueira. Agora, um estudo sobre uma mutação genética que aumenta o risco de Alzheimer, enfermidade neurodegenerativa e uma das principais causas de demência, mostra que a variante pode proteger contra o problema oftalmológico. Segundo os autores, as descobertas abrem caminho para o combate direto à doença, com potencial de recuperação do nervo óptico.

O estudo, publicado na revista Immunity, baseia-se em uma importante descoberta de 2017, de que doenças neurodegenerativas, caracterizadas pela destruição de células do sistema nervoso central, têm em comum a variante APOE4 do gene Apolipoproteína E. Curiosamente, embora a variante eleve o risco de Alzheimer, ela também reduz o risco de desenvolvimento de glaucoma, descobriu, há dois anos, uma equipe de cientistas do Mass Eye and Ear e do Brigham and Women´s Hospital, nos EUA, liderados por Milica Margeta, professora e especialista em glaucoma.

A relação entre a mutação e seu efeito protetivo contra a doença oftalmológica, porém, ainda não havia sido compreendida. Agora, novamente sob a coordenação de Margeta, os pesquisadores das mesmas instituições descobriram como o APOE4 pode evitar o glaucoma. O estudo, feito com modelos animais, mostrou que um tratamento genético que visa a variante é capaz de prevenir a destruição dos neurônios associados à cegueira.

"Nossa pesquisa fornece uma maior compreensão do caminho genético que leva à cegueira irreversível no glaucoma e, mais importante, aponta para um possível tratamento para abordar a causa raiz da perda de visão", disse, em nota, Margeta. "Esse estudo mostra que a cascata da doença mediada pelo gene APOE é claramente prejudicial no glaucoma e que, quando você interfere nela geneticamente ou farmacologicamente, pode realmente interromper a doença."

No estudo, os cientistas tentaram induzir o glaucoma em camundongos modificados geneticamente para exibirem a variante APOE4. Apesar da pressão ocular elevada, esses animais não sofreram danos nas células ganglionares da retina, que são destruídas na doença. Para entender o processo, os pesquisadores fizeram um sequenciamento genético com objetivo de identificar, no cérebro dos animais, quais genes foram ativados e desligados em um tipo de célula do sistema imunológico chamado micróglia, que tem associação com o glaucoma.

Inflamação

Embora a causa exata da doença não seja conhecida, acredita-se que o glaucoma é o resultado de um processo inflamatório microscópico no nervo óptico. Nos pacientes, a microglia está sempre ativada. Em tecidos saudáveis, essa importante célula protege os olhos e o cérebro, mas, em doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson, ela pode produzir moléculas tóxicas, incluindo uma chamada galectina-3, que destroem neurônios e outros grupos celulares.

No estudo, os cientistas observaram que, nos animais geneticamente modificados para exibirem a variante APOE4, a pressão ocular alta não conseguia fazer com que a micróglia deixasse de ser saudável e se transformasse numa célula potencialmente tóxica. Sem ser ativada, ela deixou de produzir a galectina-3 e, consequentemente, os neurônios foram protegidos. A conclusão foi que tentar inibir a fabricação dessa molécula pode evitar o glaucoma. Para reforçar a ideia, os pesquisadores avaliaram amostras de tecido ocular humano e viram que, nos pacientes com a cegueira progressiva e variante comum da APOE, essa substância estava aumentada. Porém, naqueles com a mutação APOE4, ela praticamente não era detectável.

"Essa foi uma descoberta impressionante e levou a testar se uma intervenção farmacológica poderia bloquear galectina-3, que poderia potencialmente tratar o glaucoma", conta o autor sênior do estudo, Oleg Butovsky, professor associado de neurologia na Escola de Medicina de Harvard. Os cientistas usaram inibidores de galectina-3, que podem ser derivados de fontes naturais e estão atualmente em ensaios clínicos para o tratamento da fibrose pulmonar.

O resultado foi que a injeção de inibidores de galectina-3 bloqueou a cascata da doença nos camundongos com glaucoma, e as células ganglionares da retina foram protegidas, mesmo com a pressão ocular elevada. "Nossas descobertas fornecem uma explicação de por que a APOE4 está associada a um risco reduzido de glaucoma e mostram que a via de sinalização da APOE é um alvo promissor para tratamentos neuroprotetores para essa doença. No entanto, ainda não sabemos por que o mesmo alelo é deletério na doença de Alzheimer, mas protetor em doenças neurodegenerativas oculares", diz Butovsky.

Regeneração

"O glaucoma é uma doença muito séria porque as perdas são permanentes, não é possível recuperar os danos. Todo o tratamento que temos hoje é para diminuir a pressão no olho, mas o que acontece dentro do órgão não se sabe", diz Jonathan Lake, diretor médico e oftalmologista do Grupo Opty. "Esse estudo abre um caminho para o tratamento da causa do glaucoma; é um passo importantíssimo. Nas fotos publicadas no estudo, podemos ver o crescimento e a regeneração das células", afirma, destacando que ainda é uma pesquisa preliminar, feita com animais. O especialista lembra que, por ser uma doença grave, é preciso monitorá-la frequentemente, especialmente no caso de pessoas com históric o familiar. 

Segundo Milica Margeta, a equipe pretende, agora, pesquisar mais detalhadamente os inibidores de galectina-3 como tratamentos em potencial para o glaucoma, fazendo testes em outros modelos animais. Além disso, querem descobrir quais as abordagens mais minimamente invasivas para administrar a substância, seja via oral ou na forma de um gel de liberação lenta. Os cientistas já estão analisando o fluido ocular e amostras de soro de pacientes submetidos à cirurgia de glaucoma para identificar qual população seria beneficiada pelos inibidores de galectina-3. Os resultados darão o primeiro passo para ensaios clínicos, em humanos.

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Três perguntas para

Ramon Barreto, oftalmologista e especialista em retina do Visão Hospital de Olhos

 Ramon Barreto, oftalmologista do Visão Hospital de Olhos, especialista em retina
Ramon Barreto, oftalmologista do Visão Hospital de Olhos, especialista em retina (foto: Visão Hospital de Olhos/Divulgação )

Estudos anteriores já sugeriram associações entre glaucoma, Alzheimer e o gene APOE4. Qual seria a relação entre eles?

A superexpressão do APOE4 acarreta, de acordo com alguns estudos científicos, um maior risco de desenvolvimento do Alzheimer, porém reduziria o risco de dano glaucomatoso. Sabe-se que a APOE atua na regulação da homeostase (equilíbrio) das células da micróglia, que são células de suporte e proteção das células nervosas, tanto da retina quanto do sistema nervoso central. O dano glaucomatoso e consequente cegueira ocorrem quando temos a degeneração das células ganglionares, que são os neurônios responsáveis por transmitir os impulsos visuais dos fotorreceptores da retina até o cérebro.

Os mecanismos que levam ao glaucoma e à perda de visão por essa causa já são bem compreendidos?

Sabe-se que o glaucoma ocorre pela degeneração das células ganglionares. Mas o mecanismo exato que leva a essa degeneração ainda não está totalmente elucidado. O principal fator de risco para a degeneração das células ganglionares é o aumento da pressão intraocular. Porém, existem casos de dano glaucomatoso mesmo com a pressão ocular normal. Uma das explicações seria justamente o papel da APOE na homeostase nas células de sustentação e proteção desses neurônios, ou seja, nas células da glia, em especial na micróglia.

O estudo sugere uma abordagem genética para o tratamento do glaucoma. Embora ainda esteja na fase pré-clínica, há expectativas de que essa abordagem poderá beneficiar pacientes humanos?

Estudos têm demonstrado que, ao se ter como alvo a APOE, como também a galectina-3, teria-se uma proteção das células ganglionares da retina, evitando o seu dano, chamado também de apoptose, o que evitaria a perda de campo visual e a cegueira. Então, o desenvolvimento de medicamentos e terapia gênica nestes alvos poderia ser de grande valia no tratamento do glaucoma. Os resultados devem ser analisados sempre com cautela, pois ainda são estudos iniciais, testados em animais e não se sabe ainda se a resposta em humanos seria ou não similar. Por isso, é importante estudos futuros acerca desse tema.

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