O impacto da pandemia da covid-19 nas notificações das Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN) foi tema de uma mesa-redonda da 74° reunião anual da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC), realizado na Universidade de Brasília (UnB). O debate ocorreu nesta segunda-feira (25/7), com presença dos palestrantes Marcus Vinicius Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas (FMTAM); Ethel Leonor, Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Márcia Hueb, Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
As doenças tropicais negligenciadas são aquelas causadas por agentes infecciosos ou parasitas e acometem cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo, com maior incidência nas populações mais pobres e marginalizadas, onde há falta de saneamento básico e condições precárias de saúde.
As doenças tropicais, como a malária, a doença de chagas, tuberculose, a doença do sono (tripanossomíase humana africana, THA) a leishmaniose visceral (LV), a filariose linfática, dengue e esquistossomose continuam sendo alguma das principais causas de mortalidade no mundo.
"Como todos sabemos a pandemia da covid-19 tem sido um dos maiores desafios sanitários da nossa geração, e que ainda causa uma série de adoecimentos e mortes na nossa sociedade. Para além do desastre sanitário causado pela pandemia, a covid-19 também impacta outras doenças negligenciadas no Brasil", afirmou Guilherme Werneck coordenador da mesa de debate.
Estudo intitulado Análise das internações e da mortalidade por doenças febris, infecciosas e parasitárias durante a pandemia de covid-19 no Brasil observou a evolução dos casos de leishmaniose visceral, leptospirose, dengue e malária em 2020.
Os dados foram retirados com base em informações epidemiológicas registradas em bancos de dados oficiais, no caso do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS). De acordo com o levantamento, entre 2017 e 2019, a média mensal de internações ocorridas nos meses de janeiro a agosto foi de 222,25 internações por Leishmaniose visceral, 220,5 por leptospirose e 160,7 por malária. Em 2020, entre janeiro e agosto, a média mensal foi de 125,38 internações por leishmaniose visceral, 155,87 por leptospirose e 113,25 por malária, números que representam uma queda nas internações em comparação com os anos anteriores à pandemia.
Marcus Vinicius Lacerda, médico da FMTAM, disse que o Brasil deve autopsiar o que foi feito de errado na pandemia da covid-19. "Todos nós somos muito ingênuos sobre pandemia. É importante o Brasil autopsiar agora e compreender de que forma a gente pode avançar e contribuir para o avanço da ciência"
Interesse coletivo
Na visão de Lacerda, as DTN não recebem o mesmo destaque a covid-19. "Há uma diferença de interesse coletivo. Nas doenças negligenciadas há uma alta morbimortalidade, falta de ferramentas de controle, falta de vacinas, falta de medicações eficazes. Já no caso da covid-19 houve vontade popular e política para a resolução dos problemas."
Lacerda comparou a malária vivax com a covid-19. Segundo ele, até hoje a malária continua sem estudos de vacina clínica, já a covid-19 teve estudos clínicos da vacina em menos de 6 meses e em 12 meses foi iniciada a vacinação em massa da população. Outro ponto trazido por Lacerda é o atraso e a diferença do financiamento das doenças.
"Nas últimas décadas é possível observar que as definições são um pouco políticas. Nas doenças negligenciadas falta financiamento privado, isso porque são doenças que não tem um lucro muito claro e por isso a iniciativa privada não se envolve muito com o diagnóstico dessas doenças. Também há uma falta de visibilidade da vítima da doença, grande parte das pessoas que pegam malária na Amazônia são invisíveis, isso não aparece na grande mídia. Existe também um controle de barreiras sócio-culturais para o controle efetivo dessas doenças, além da dificuldade na divulgação do conhecimento, ainda é difícil. Quando há vontade política e interesse coletivo o investimento existe."
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"Outro problema que percebemos é que outras doenças começam a ser negligenciadas com a pandemia, a Aids, por exemplo, é um grave problema de saúde pública, a tuberculose também tem grande impacto nas áreas Tropicais e em populações mais pobres, além da Hepatite C", disse.
Negligências
A covid-19 impactou diretamente na notificação das doenças infecciosas. Muitas intervenções foram interrompidas, o controle vetorial e a busca ativa de casos ficaram muito prejudicadas. Houve também um atraso no diagnóstico e no tratamento das doenças.
Para a professora Ethel Leonor da UFES, presidente da Rede Brasileira de Pesquisa em Tuberculose, a desigualdade social é um dos maiores desafios das doenças tropicais negligenciadas.
“A tuberculose é uma doença que continua concentrando muita carga de transmissão em países menos desenvolvidos", diz Leonor, que pontua ainda que em alguns países os casos de tuberculose superam os da covid-19. "Em 1993, a OMS declarou a tuberculose como um problema de saúde pública. A pandemia de covid-19 interrompeu gravemente as respostas à tuberculose em países de baixa e média renda", diz.
A especialista explica que existem muitas semelhanças da tuberculose em relação a covid-19. Ambos são infecções transmitidas pelo ar, afetando, principalmente, o trato respiratório e causando sinais e sintomas similares como, tosse, febre e falta de ar.
Segundo dados sobre investimento em pesquisa no Brasil, a aplicação financeira em tuberculose é bem inferior a da covid-19. No portal de transparência do governo brasileiro, o valor total investido nos últimos dez anos na pesquisa da tuberculose foi de pouco mais de U$ 6 milhões. Já o financiamento para a pesquisa da covid-19 em 2020, segundo o governo brasileiro, foi da ordem de U$ 100 milhões.
Na avaliação de Ethel Leonor, o Brasil precisa olhar para a tuberculose e para as doenças negligenciadas e implementar políticas públicas para enfrentar a doença. Ela cita que é necessário estabelecer a triagem massiva em nível comunitário e de atenção primária à saúde. "Pessoas com tosse e febre devem ser testadas para tuberculose e covid", pontua.
Além de investir no tratamento de infecção latente de tuberculose como método de prevenção. Leonor diz que o investimento em qualificação de profissionais e em pesquisa é fundamental para enfrentar as doenças tropicais negligenciadas.
Márcia Hueb, professora de infectologia do Hospital Universitário Júlio Muller da UFMT e pesquisadora em clínica e tratamento da leishmaniose, as doenças negligenciadas não despertam interesse na indústria farmacêutica.
"Doenças mais negligenciadas, como doença do sono, doença de chagas e leishmaniose, que afetam exclusivamente pessoas nos países em desenvolvimento, praticamente não tem nenhum mercado, para a maioria estão fora do âmbito dos esforços de P&D da indústria farmacêutica."
Hueb explica que já existem muitas pesquisas sobre leishmaniose visceral e outras doenças consideradas negligenciadas, no entanto, ela diz que faltam investimentos no tratamento e no combate dessas doenças.
"Muitas pesquisas sobre a leishmaniose visceral foram desenvolvidas desde a década de 1950. A gente tem um exemplo atual com a varíola dos macacos (Monkeypox) a gente já tem 11 países com presença de casos humanos e quando a doença chega na Europa ela já é vista de forma diferente. Enquanto ela estava no continente africano a importância era muito menor, a doença era negligenciada e isso é um problema."
Na avaliação dos três especialistas que participaram do debate é essencial investir e regionalizar as doenças negligenciadas, priorizar as pesquisas e redirecionar os investimentos para doenças que são mais negligenciadas no Brasil em populações vulneráveis e de baixa renda.
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