Um novo relatório das Nações Unidas detalha o quanto a relação das populações com espécies selvagens — tanto animais quanto plantas — precisa ser ajustada. O trabalho que tem como base mais de 6,2 mil fontes mostra que 20% — uma em cada cinco — das pessoas do mundo dependem dessas espécies para obter renda e para a alimentação. Está em curso, porém, uma acelerada crise global de biodiversidade, com cerca de 1 milhão de animais e plantas correndo risco de extinção principalmente em função de atividades humanas.
"As populações urbanas dos países ricos não se dão conta de que plantas selvagens entram na composição de medicamentos e cosméticos, de que comem peixes selvagens e de que há grande chances de os seus móveis serem de árvores selvagens", ilustra, à agência France-Presse de notícias (AFP) Jean-Marc Fromentin, um dos autores do documento, divulgado ontem pela Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (Ipbes). Participaram do trabalho, que durou quatro anos, 85 especialistas das ciências naturais e sociais e detentores de conhecimento indígena e local, além de 200 colaboradores.
A análise revelou que cerca de 50 mil espécies selvagens são alvo de diferentes atividades humanas, como pesca, colheita e extração de madeira. Nesse universo, há cerca de 7,5 mil espécies de peixes e invertebrados aquáticos, 7,4 mil árvores e 7, 5 mil espécies anfíbias, répteis, pássaros e mamíferos. Do total, em torno de 10 mil estão ligadas diretamente à alimentação.
No entanto, a superexploração afeta 34% das populações de peixes, põe em risco 1.341 mamíferos selvagens e 12% das espécies de árvores silvestres, mostra também o documento. O tráfico ilícito de fauna e flora silvestre é considerado o terceiro maior do mundo, atrás do tráfico de seres humanos e drogas, movimentando anualmente cerca de US$ 199 bilhões.
Os autores enfatizam que essa relação desarmônica impacta o planeta como um todo, mas que as nações mais pobres podem ser as mais afetadas. "Cerca de 70% dos pobres no mundo dependem diretamente das espécies selvagens, com 2,4 bilhões de pessoas dependendo da madeira para cozinhar", enfatiza Marla Emery, coautora do relatório. Das 120 milhões de pessoas que trabalham na pesca de captura, 90% são sustentadas pela pesca em pequena escala, o que também sinaliza um impacto maior sobre os mais vulneráveis.
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Indígenas
O relatório do Ipbes também detalha o quanto as populações indígenas são estratégicas para a preservação das espécies selvagens. Elas administram atividades como caça, pesca e colheita em cerca de 40% das áreas terrestres conservadas, em 87 países. "A gestão indígena da biodiversidade é muitas vezes incorporada no conhecimento, nas práticas e na espiritualidade locais (...) Reunir cientistas e povos indígenas para aprender uns com os outros fortalecerá o uso sustentável de espécies selvagens", defende Marla Emery.
Na avaliação da especialista, a maioria das estruturas nacionais e dos acordos internacionais prioriza considerações ecológicas e algumas sociais, incluindo questões econômicas e de governança, mas dá pouca atenção aos contextos culturais. "Essas práticas e culturas (dos povos indígenas e das comunidades locais) são diversas, mas existem valores comuns, incluindo a obrigação de respeitar a natureza, retribuir pelo que é tirado, evitar desperdícios, gerenciar colheitas e garantir a distribuição justa e equitativa dos benefícios das espécies selvagens para o bem-estar da comunidade", justifica.
Também fazem parte das medidas propostas pelos especialistas para proteger as espécies selvagens a redução da pesca ilegal, o estabelecimento de certificações para a extração de madeira, a criação de sistemas de governança eficazes e uma redistribuição igualitária dos lucros e custos da vida selvagem. "É preciso chegar a uma visão mais sistêmica de que a humanidade faz parte da natureza", concluem os autores. O relatório foi validado por delegações dos 139 países membros do Ipbes reunidos, nesta semana, em Bonn, na Alemanha.