Entre 1346 e 1353, uma bactéria varreu cerca de 60% da população da Eurásia, região que engloba países europeus e asiáticos. Nos 500 anos seguintes, uma pandemia provocaria milhões de mortes, sem que se soubesse a origem da chamada Peste Negra ou Bubônica, por causa dos linfonodos inchados das vítimas, semelhantes a bulbos. Somente no século 19, o bacteriologista francês identificou a causadora do mal: a Yersinia pestis, bacilo transmitido por animais infectados. Restava, porém, saber a origem do patógeno.
Se na Idade Média e no período moderno os judeus foram responsabilizados pela pandemia, a China também despontou como possível berço da Y. pestis — a descoberta do bacilo foi em Hong Kong. As discussões continuaram até agora, quando um grupo multidisciplinar de pesquisadores do Instituto Max Planck e da Universidade de Tübingen, na Alemanha, e da Universidade de Stirling, na Escócia, decifrou o enigma. Com análises genéticas de sete indivíduos, os cientistas constataram que o patógeno surgiu na região do Lago Issyk Ku, próximo do Quirguistão, que compunha a Rota da Seda. Esses caminhos interligados eram utilizados por mercadores entre Ásia, África e Europa, para transportar os mais variados produtos. Na parada, em algum ponto do local agora apontado pelos pesquisadores, a Y.pestis pegou carona nas caravanas, alcançando o Velho Continente.
"Houve várias hipóteses diferentes sugerindo que a pandemia pode ter se originado no leste da Ásia, especificamente na China, na Ásia Central, na Índia, ou mesmo perto de onde os primeiros surtos foram documentados, em 1346, nas regiões do Mar Negro e do Mar Cáspio", disse, em uma coletiva de imprensa on-line, a arqueogeneticista e principal autora do estudo, Maria Spyrou, da Universidade de Tübingen. "Sabemos que o comércio foi, provavelmente, um fator determinante para a dispersão da peste na Europa durante o início da Peste Negra. É razoável supor que processos semelhantes determinaram a propagação da doença da Ásia Central para o Mar Negro entre 1338 e 1346." O artigo foi publicado na revista Nature.
As proximidades do Quirguistão eram uma das localidades suspeitas, porque foi lá que se encontrou o único vestígio arqueológico da peste. Há 120 anos, restos mortais de cemitérios chamados Kara-Djigach e Burana foram escavados na região, e transferidos para São Petersburgo, na Rússia. Ali, havia uma importante pista: referências explícitas a uma determinada peste nas lápides.
Segundo o historiador Philip Slavin, da Universidade de Stirling, na Escócia, e coautor do estudo, Tian Shan — o sistema de cordilheiras que faz fronteira entre Cazaquistão, Quirguistão e a Região Autônoma Uigur (China ocidental) ser o epicentro da peste — faz todo o sentido. A região está na antiga rota comercial da seda, e os túmulos do Quirguistão continham pérolas do Oceano Índico, corais do Mediterrâneo e moedas estrangeiras, sugerindo que mercadorias distantes passavam pela área. "Podemos levantar a hipótese de que o comércio, tanto de longa distância quanto regional, deve ter desempenhado um papel importante na disseminação do patógeno para o oeste", disse Slavin.
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Sequenciamento
Parte do material funerário foi analisado pela equipe da Alemanha, com sequenciamento total do genoma de sete pessoas. Como as informações genéticas da Y. pestis foram completamente decifradas no ano passado, foi possível comparar os materiais. Agora, parece não haver mais dúvidas: esses indivíduos foram vítimas da Peste Negra. "Nossa descoberta de que a Peste Negra se originou na Ásia Central na década de 1330 encerra debates seculares", disse Slavin.
De acordo com os autores, essa cepa não deu origem somente à Peste Negra, mas à maioria dos patógenos da peste que ainda circulam. Embora muitas pessoas pensem que a doença foi erradicada, há surtos localizados da enfermidade em muitos países asiáticos e africanos. Os pesquisadores destacaram que a Y.pestis sobrevive em populações de roedores selvagens em todo o mundo. A antiga variante da Ásia Central que causou a epidemia de 1338-1339 ao redor do Lago Issyk Kul deve ter vindo de um desses reservatórios.
"Descobrimos que as cepas modernas mais intimamente relacionadas à cepa antiga são hoje encontradas em reservatórios de peste ao redor das montanhas Tian Shan, muito perto de onde a cepa antiga foi encontrada. Isso aponta para uma origem do ancestral da Peste Negra na Ásia Central", explicou, na coletiva, Johannes Krause, autor sênior do estudo e diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva. Embora esta terrível pandemia seja muito associada à Europa, ela também devastou países asiáticos.
Agora, os pesquisadores pretendem avaliar restos mortais encontrados na China para desvendar o lado oriental deste capítulo da história. "Ter mais amostras de pragas da Ásia e da China antigas será superinteressante em termos de adicionar ainda mais evidências à origem asiática da primeira e segunda pandemias", acrescentou, em entrevista à revista Nature, Simon Rasmussen, biólogo computacional da Universidade de Copenhague, que analisou sequências antigas de Y. pestis.
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